sábado, 22 de agosto de 2015

Denô

    Corria um dia da manhã por baixo das árvores imensas de um parque. Seus galhos me pareciam mover-se e serpentear em direção ao verde das folhas. Pensei em você. As árvores são o tempo em forma visível, sempre crescendo e apontando seus galhos para o céu, o tronco contando o incontável em seus aneis de madeira. Comecei a chorar e nem sei porquê. 
    Me lembrei dos anagramas à tarde, quando eu mal sabia escrever letras cursivas. Lembro das piadas (tantas!) que formavam meu extenso repertório de entretenimento barato e que tanto embaraçaram minha mãe quando ditas na hora e no lugar errado. Foi você quem me ensinou.
    Lembro dos aperitivos de castanha, azeitona e vinho, lembro de como a palavra me parecia estranha quando escutei pela primeira vez. Aperitivo. E se isso era antes, depois do almoço lembro dos seus olhos fechados, recostado numa sombra ou no sofá. Eu não entendia por que é que você precisava descansar. Agora eu entendo.
    Uma voz, minha própria voz infantil sussurra no meu ouvido por uma fresta, que foi tudo o que minhas mãozinhas puderam fazer naquela manhã de sábado: “Vô, abre a porta branca...” Escuto agora sua voz repetindo essa frase milhares de vezes com um sorriso nos lábios, achando graça de algo que para mim vai ser sempre um mistério... Como tantos outros.
    Jogávamos cartas, batalha naval e os jogos italianos que só você sabia as regras. Brincávamos de enigmas de todos os tipos e agora me deparo com o maior de todos eles, o enigma sem solução. Esse enigma também pairava no ar na primeira vez em que te vi chorar e aquilo me parecia tão estranho! Não havia lugar pra tanta tristeza no seu jeito de menino pequeno, eternamente com cinco anos. Hoje eu sei, pelas próprias águas que me vazam dos olhos, que o choro não é só de tristeza... Bate também aquela coisa que não se traduz pra língua nenhuma, a famosa saudade.
    Lembro, então, do seu jeito maroto, de como gostava de comer frutas, da criação de avestruz, de como me fez mentir minha idade para não pagar a passagem do ônibus que pegamos na Cardeal da Silva. Conversamos tanto aquele dia! Toda a vida falamos de metafísica, do espaço, dos espíritos e dos buracos negros. Tudo se conectava e fazia parte do mesmo mistério nas nossas cabeças. 
Gosto, sempre gostei, da sua cama duríssima, cama “de faquir”, e gosto de como você também não gostava de quiabo. Gosto do seu imenso chapéu de palha e de como me parecia esdrúxulo e me fazia rir. Gosto do seu pequeno globo terrestre amarelo, todo enfeitado com figuras de monstros que os homens medievais imaginavam rondar a terra. E gosto de falar um pouquinho no presente, pra sentir como se você estivesse aqui do meu lado um pouco mais.
    Lembro, então das histórias das suas viagens... Do avião que voava aberto e do homem que mudou o curso de um barco com seus próprios braços, segurando num tronco. Lembro de sentir uma decepção incrível se aproximar quando me disseram que não eram reais. Hoje já não me importa se aconteceram ou não porque entendi que, assim como você, tudo está nas minhas memórias e elas são reino meu, para fazer dele o que quiser.
Tenho um álbum imaginário com fotos de todos os domingos quando nos juntávamos todos pra fazer macarrão, estendendendo a massa e colocando pra secar em grandes lençóis nos varais.
    Lembro de como jogávamos vôlei, todos, obrigatóriamente, até as relutantes visitas. E juntos cantávamos canções no natal, cada voz num dissonância magnífica que completava as outras. Lembro da música que você tocava todas as vezes que ia lá em casa e que assobiava no refrão. A voz da minha mãe acompanhando se juntava ao assobio e ao som do piano. Ah, o piano! Você era música, vô! Ela enchia seu corpo como enchia meus ouvidos e todo o espaço. 
    Na época eu não sabia te responder, mas hoje sei que na barca do fim do mundo eu salvaria o violinista, mesmo acompanhado de sua esposa louca. Hoje eu sei que a loucura e a arte são faces da mesma moeda, inseparáveis. Saber disso não tem preço... Você que me ensinou.
    Ai, como eu queria estar aí para cantar pra você! Cantar Chico, cantar Noel, cantar as músicas que você compôs... Alegres e lindas, como você! Sambando na vida! E foi também você quem me ensinou a sambar a dois, como dança de salão, e nenhuma valsa jamais me pareceu tão gostosa. 
    Queria estar aí pra cantar um samba e dançar de cabelo solto, como Isadora, como você dizia que achava lindo e livre. Queria. Mas você também me ensinou, com suas histórias, com sua sede de vida, que é preciso viajar, conhecer o mundo, viver aventuras e poder contar minhas próprias histórias. E é isso que estou fazendo, vô, e é por isso que não estou aí pra me despedir. É por isso que vejo seu rosto e suas rugas na casca das árvores e é por isso que de você só posso me lembrar, mas juro escolher as melhores lembranças.
    Espero que você tenha “aberto a porta branca”. Espero que sua energia quântica tenha se soltado desse corpo que já não servia para seu espírito de criança. Espero que ele esteja rindo e cantando em algum lugar ensolarado e cheio de música. Espero que esteja me esperando. Tocando piano. Um dia eu também vou e você vai me abraçar e me chamar de sua moreninha. Um dia.
    Mas enquanto isso eu vou viver muito, com toda a intensidade, com toda a vontade, com tudo que você nos ensinou. Você, que era Aníbal, Falabrino, Denovaro, Sérgio e que pra mim sempre vai ser Vô. Denô.


7 comentários:

  1. Obrigada, seres amados! Obrigada por terem lido com amor. :)

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  2. Muita delicadez, história e emoção!
    Lindo lindo!
    Minha querida amadafilhadamiga

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Sua sensibilidade e sabedoria poética, retratam a beleza do seu ser, que invadiu o interior daquele que viveu de uma forma corajosa e desafiadora dos padrões que estamos acostumados, com um único objetivo: usufruir da felicidade que ele acreditava, e, você mergulhou profundamente, sem preconceitos, sem julgamentos e viu a beleza que havia no âmago daquela alma, expressando aqui o que muitos não tiveram este privilégio.
    Obrigada Lana pela sua beleza extraordinária! Você continua guardadinha no meu coração.
    Mil beijocas.

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