De repente o simples ato de respirar tornou-se uma façanha impossível. Deu-se conta de que os pulmões lutavam contra toda uma atmosfera e expandir-se para permitir a entrada de ar era um esforço hercúleo. Poucos segundos atrás era fácil como... Bem... Como respirar. Agora o oxigênio rareava nos alvéolos, sedentos, ressequidos. Os últimos vestígios de gás carbônico, antes mero dejeto, já lhe pareciam gases nobres.
Desesperou-se. Talvez por intoxicação começava a sentir o peso abstrato do conceito de atmosfera que agora não só lhe paralisava o diafragma, mas também os membros e já começava a congelar o cérebro com todo o frio do vácuo espacial.
O todo era gigantesco e calculava não conseguir nem mesmo conceber inteiramente a grandeza disso, dessa coisa brutal que o léxico tentava definir em meras quatro letras do alfabeto latino. Sua existência, em meio a isso, lhe parecia ainda menos que os pulmões, agora ainda mais comprimidos de terror.
Esquecera-se como respirar e já desapareciam de sua mente, junto com os vestígios de ar e sanidade, as últimas lembranças de como se parecia a luz do sol e da sensação de seu calor queimando a pele. Tudo era escuro, tudo era nada. Já não podia decidir se o que mais lhe esmagava era o vácuo ou a própria madrugada.
Como as notas de uma melodia que no início não fazem sentido, mas depois começam a soar familiares.
sexta-feira, 28 de agosto de 2015
sábado, 22 de agosto de 2015
Denô
Corria um dia da manhã por baixo das árvores imensas de um parque. Seus galhos me pareciam mover-se e serpentear em direção ao verde das folhas. Pensei em você. As árvores são o tempo em forma visível, sempre crescendo e apontando seus galhos para o céu, o tronco contando o incontável em seus aneis de madeira. Comecei a chorar e nem sei porquê.
Me lembrei dos anagramas à tarde, quando eu mal sabia escrever letras cursivas. Lembro das piadas (tantas!) que formavam meu extenso repertório de entretenimento barato e que tanto embaraçaram minha mãe quando ditas na hora e no lugar errado. Foi você quem me ensinou.
Lembro dos aperitivos de castanha, azeitona e vinho, lembro de como a palavra me parecia estranha quando escutei pela primeira vez. Aperitivo. E se isso era antes, depois do almoço lembro dos seus olhos fechados, recostado numa sombra ou no sofá. Eu não entendia por que é que você precisava descansar. Agora eu entendo.
Uma voz, minha própria voz infantil sussurra no meu ouvido por uma fresta, que foi tudo o que minhas mãozinhas puderam fazer naquela manhã de sábado: “Vô, abre a porta branca...” Escuto agora sua voz repetindo essa frase milhares de vezes com um sorriso nos lábios, achando graça de algo que para mim vai ser sempre um mistério... Como tantos outros.
Jogávamos cartas, batalha naval e os jogos italianos que só você sabia as regras. Brincávamos de enigmas de todos os tipos e agora me deparo com o maior de todos eles, o enigma sem solução. Esse enigma também pairava no ar na primeira vez em que te vi chorar e aquilo me parecia tão estranho! Não havia lugar pra tanta tristeza no seu jeito de menino pequeno, eternamente com cinco anos. Hoje eu sei, pelas próprias águas que me vazam dos olhos, que o choro não é só de tristeza... Bate também aquela coisa que não se traduz pra língua nenhuma, a famosa saudade.
Lembro, então, do seu jeito maroto, de como gostava de comer frutas, da criação de avestruz, de como me fez mentir minha idade para não pagar a passagem do ônibus que pegamos na Cardeal da Silva. Conversamos tanto aquele dia! Toda a vida falamos de metafísica, do espaço, dos espíritos e dos buracos negros. Tudo se conectava e fazia parte do mesmo mistério nas nossas cabeças.
Gosto, sempre gostei, da sua cama duríssima, cama “de faquir”, e gosto de como você também não gostava de quiabo. Gosto do seu imenso chapéu de palha e de como me parecia esdrúxulo e me fazia rir. Gosto do seu pequeno globo terrestre amarelo, todo enfeitado com figuras de monstros que os homens medievais imaginavam rondar a terra. E gosto de falar um pouquinho no presente, pra sentir como se você estivesse aqui do meu lado um pouco mais.
Lembro, então das histórias das suas viagens... Do avião que voava aberto e do homem que mudou o curso de um barco com seus próprios braços, segurando num tronco. Lembro de sentir uma decepção incrível se aproximar quando me disseram que não eram reais. Hoje já não me importa se aconteceram ou não porque entendi que, assim como você, tudo está nas minhas memórias e elas são reino meu, para fazer dele o que quiser.
Tenho um álbum imaginário com fotos de todos os domingos quando nos juntávamos todos pra fazer macarrão, estendendendo a massa e colocando pra secar em grandes lençóis nos varais.
Lembro de como jogávamos vôlei, todos, obrigatóriamente, até as relutantes visitas. E juntos cantávamos canções no natal, cada voz num dissonância magnífica que completava as outras. Lembro da música que você tocava todas as vezes que ia lá em casa e que assobiava no refrão. A voz da minha mãe acompanhando se juntava ao assobio e ao som do piano. Ah, o piano! Você era música, vô! Ela enchia seu corpo como enchia meus ouvidos e todo o espaço.
Na época eu não sabia te responder, mas hoje sei que na barca do fim do mundo eu salvaria o violinista, mesmo acompanhado de sua esposa louca. Hoje eu sei que a loucura e a arte são faces da mesma moeda, inseparáveis. Saber disso não tem preço... Você que me ensinou.
Ai, como eu queria estar aí para cantar pra você! Cantar Chico, cantar Noel, cantar as músicas que você compôs... Alegres e lindas, como você! Sambando na vida! E foi também você quem me ensinou a sambar a dois, como dança de salão, e nenhuma valsa jamais me pareceu tão gostosa.
Queria estar aí pra cantar um samba e dançar de cabelo solto, como Isadora, como você dizia que achava lindo e livre. Queria. Mas você também me ensinou, com suas histórias, com sua sede de vida, que é preciso viajar, conhecer o mundo, viver aventuras e poder contar minhas próprias histórias. E é isso que estou fazendo, vô, e é por isso que não estou aí pra me despedir. É por isso que vejo seu rosto e suas rugas na casca das árvores e é por isso que de você só posso me lembrar, mas juro escolher as melhores lembranças.
Espero que você tenha “aberto a porta branca”. Espero que sua energia quântica tenha se soltado desse corpo que já não servia para seu espírito de criança. Espero que ele esteja rindo e cantando em algum lugar ensolarado e cheio de música. Espero que esteja me esperando. Tocando piano. Um dia eu também vou e você vai me abraçar e me chamar de sua moreninha. Um dia.
Mas enquanto isso eu vou viver muito, com toda a intensidade, com toda a vontade, com tudo que você nos ensinou. Você, que era Aníbal, Falabrino, Denovaro, Sérgio e que pra mim sempre vai ser Vô. Denô.
domingo, 16 de agosto de 2015
“DOMINGO”
Não, eles ainda parecem não ter certeza de que não sou daqui. Alguns, imagino, pensam que sou de fora, mas não demonstram ter noção do quão longe é isso. Outros só não sabem de nada, at all. Aparentemente o meu uso confuso das línguas nativas e imensa incapacidade de adaptação às constantes mudanças de tendência da “moda” não tiveram destaque suficiente para me denunciar.
Acho que foi por isso que decidi registrar minhas experiências. Acho que talvez eu esteja cada vez mais me acostumando com as coisas daqui, acreditando na estrutura de vida na qual os seres daqui se baseiam para enxergar a realidade. É fácil demais de acreditar: as pessoas têm grande dependência de seus corpos e sentidos biológicos na percepção do universo e esses sentidos são tão potentes que inebriam a visão livre do meu espírito e me submergem em emoções e sentidos e axiomas, como quem mergulha em água.
Tenho medo de me perder nestas águas e perder a noção do que é estrutura construída e o que é realidade. Tenho medo de que este cenário se torne cada vez mais real em minha mente e que, como os seres daqui, eu seja o ator que se torna seu personagem. Acho que talvez isso já esteja acontecendo. Minhas metáforas já vêm das experiências desse mundo, meus veículos de expressão e registro de ideias já são daqui e, cada vez mais, uso minha mente biológica e mortal para armazenar as informações.
Ainda é confusa pra mim a maneira com que medem a dimensão do tempo. Tendem a dividí-la em pedaços que se repetem em determinado intervalos e dão nomes às partículas desses intervalos. O intervalo de rotação do planeta é chamado de dia e divide-se em vinte e quatro pedaços, o intervalo de rotação do planeta em torno da estrela Sol é denominado ano e por aí vai.
Existem também intervalos que não têm relação com fenômenos naturais e são estes os que mais me intrigam. A “Semana” é um intervalo composto de sete “dias”, que se repete num looping infinito, e cada um desses dias recebe um nome específico em cada língua. Este é um ciclo peculiar, que parece ditar toda uma rotina social controlar de maneira bastante intensa o rítmo de vida das pessoas e dos seus afazeres.
Agora eu estou olhando para a rua da cidade onde vivo. Cidade como eles chamam um agrupamento de moradias de seres e locais onde serviços e trabalhos são prestados. Enfim, não serei capaz se explicar toda e cada expressão desse mundo em questão. Seria repetitivo e, até certo ponto, inútil, vez que sou o único ser a ler estas memórias escritas. Creio que vou me limitar a escrever apenas sobre novas descobertas… Ou sobre as coisas que temo esquecer não me pertencerem.
Em todo caso, eu falava sobre as cidades. Sim, esses seres tendem a agrupar-se em locais fixos e muitos vivem vidas biológicas inteiras neste mesmo ambiente. Neste momento eu olho pela janela do lugar onde vivo e posso observar as vias de trânsito e árvores do lado de fora. As pessoas passam quase que despreocupadas, muitas num ritmo lento, e quase todas emanam uma certa leveza de espírito. É Domingo.
O Domingo é um dos dias da Semana. É um dia onde a maior parte das pessoas não se dedica a suas obrigações de produtividade social. No Domingo, a maior parte delas é regida por uma permissão invisível para relaxar e fazer coisas que as fazem felizes. O Domingo também é um dia que reserva certa melancolia durante o fim de tarde, quando o sol desaparece no horizonte visível. Sua luz reage com os componentes químicos da atmosfera, dando a ilusão de que o planeta tem um teto manchado de cores líquidas.
Em todo caso, eu falava sobre as cidades. Sim, esses seres tendem a agrupar-se em locais fixos e muitos vivem vidas biológicas inteiras neste mesmo ambiente. Neste momento eu olho pela janela do lugar onde vivo e posso observar as vias de trânsito e árvores do lado de fora. As pessoas passam quase que despreocupadas, muitas num ritmo lento, e quase todas emanam uma certa leveza de espírito. É Domingo.
O Domingo é um dos dias da Semana. É um dia onde a maior parte das pessoas não se dedica a suas obrigações de produtividade social. No Domingo, a maior parte delas é regida por uma permissão invisível para relaxar e fazer coisas que as fazem felizes. O Domingo também é um dia que reserva certa melancolia durante o fim de tarde, quando o sol desaparece no horizonte visível. Sua luz reage com os componentes químicos da atmosfera, dando a ilusão de que o planeta tem um teto manchado de cores líquidas.
Não sei bem explicar o que é melancolia, nem mesmo o exato causador desse sentimento. Ele pode ser gerado por estímulo de quase todos os sentidos físicos e psicológicos das pessoas desse planeta e não é exatamente classificado como “mau” nem “bom”.
Acho que é por isso que a melancolia é o sentimento que mais me intriga e fascina. Talvez também por isso o Domingo seja a minha partícula favorita do intervalo Semana, estimulando-me a começar por hoje a escrita destas memórias. “Today I feel blue”. Hoje me sinto azul. Não que isso faça algum sentido.
Sinceramente,
Acho que é por isso que a melancolia é o sentimento que mais me intriga e fascina. Talvez também por isso o Domingo seja a minha partícula favorita do intervalo Semana, estimulando-me a começar por hoje a escrita destas memórias. “Today I feel blue”. Hoje me sinto azul. Não que isso faça algum sentido.
Sinceramente,
Blue.
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Bruja Luna
Quase agosto. Tive sonho de bruxa na minha última noite vermelha. Mergulho no sonho, mergulho numa piscina de corais e toco o chão. São corais que poderiam me ter raspado a pele quando pulo do penhasco (abismo?) em seu encontro, mas neles só raspo meus dedos de leve, bem carinhosamente.
Tive sonho de bruxa, mas lembro de tão pouco! O vermelho se vai e ela hoje veio azul, dizem. Não sei... Está escondida, mas me chama e tenho que ir pra rua. Vou em busca de um resquício de magia de sonho, magia de bruxa. Vou de preto, de casaco, de couro.
Ela é a primeira coisa que vejo quando o vento me gela a cara. É quase agosto e ela é quase tão bonita quanto no sonho, mas bem menos. No sonho era prato de sopa, sopa de bruxa, meio laranjosa, toranja, avermelhada... Lua de bruxa. Aqui é lua de quase agosto, azul, não de cor, mas de sentimento. Melancolia de bruxa quase já sem sangue.
Ando pela rua da Lavadeira, eu, bruxa. O shuffle não coopera e me encolho de frio, me recolho em pensamentos. Até que está bonita... Ela... A noite também. É quase agosto, afinal, e andar aquece os músculos das pernas e do coração.
Amo a lua e amo a rua. Uma chama à outra e fazem um belo par na sexta-feira 31, que não é nem 13 nem agosto. Ainda. Sinto cheiro de um perfume bom, mas não tem ninguém por perto. Ele paira ali, como que congelado no ar de julho, esperando o mês certo para se dissipar.
Chumaços de amarelo-dente-de-leão despontam das árvores, como juba pontilhada. Já não a vejo, estou de costas. Olho para cima e da sacada de um prédio despenca cachoeira de fumaça misteriosa, que se dissipa no ar como as lembranças do sonho de bruxa. Sinto cheiro bom de novo, agora de pão, mas tampouco há padaria por perto. Nem pão nem prato de sopa.
Viro a esquina, uma quadra, depois viro de novo e lá está ela. Estou quase em casa e é quase agosto. Já estou rodando quadras há tempos... Percebo que olhando pra ela não consigo tirar o rosto do ar da noite. A lua me chama à rua. Os jovens caminham para os bares, para o centro e eu sigo na contramão. Sei que hoje não é pra mim. É só 31, é só mês 7.
Percebo que olhando para ela, farol do céu, jamais conseguiria entrar. Com custo, viro de costas e ando meia quadra. Esntro em casa sem olhar pra trás e sem me despedir. Ela já é passado e tenho sede de amanhã. Entro em casa. Agora sim já é agosto.
sábado, 8 de agosto de 2015
Velho, puído, antiquado
02:40 - Fantasio sobre o carro capotando na avenida.
15:30 - Estou trancada num carro comigo mesma.
21:20 - Ela me pede um beijo.
03:47 - Despejo de boca para boca suco de ironia, para matar nossa sede.
00:29 - É quase como se sentisse o cheiro de vitamina C, hidratante e mofo.
17:00 - Já não me lembro dos sonhos.
21:30 - Massageio suas costas finas.
10:33 - Eu já não tenho como agradecê-la.
02:24 - Estou trancada para fora de casa.
16:00 - O dia é insuportavelmente lindo.
23:04 - Chove.
03:51 - Suas palavras denotam culpa, o tom de voz pede desculpas.
06:41 - "Chá" para dois.
02:00 - Não estou chateada, só cansada e gelada.
07:20 - Que boa dupla já fomos.
A ORDEM DOS FATORES NÃO ALTERA O PRODUTO
03:09 - Fantasio sobre o pneu estourando.
22:34 - Ele entende o gráfico matemático e nos amamos por isso.
01:30 - Achei que era mais velho, mas só tinha 20.
04:32 - Rimos, tão leves de cansaço que já não podemos parar. É o primeiro de muitos sorrisos.
14:00 - Café. Coado.
20:30 - Ele fala de um livro velho, puído, antiquado, esquecido num táxi de madrugada.
05:33 - Café. Expresso.
22:40 - Ele sente calor, mas ela ainda não sente frio.
15:31 - Estou trancada num carro com um zumbi,
04:21 - Já não estamos a sós no estacionamento.
19:20 - Me sinto velha, puída, antiquada.
23:10 - Cantamos uma nostalgia em língua estrangeira, que significa tanto e não entendemos nada.
03:00 - Ele precisa de um cigarro.
11:40 - Não lembro dos sonhos.
22:12 - Ele me entrega um livro velho, puído, maravilhoso.
A ORDEM DAS CARONAS NÃO ALTERA O ENDEREÇO
00:00 - Ela tem um coração de pedra e um de carne, para suportar todos os tipos de sentimento.
05:04 - Nada é 24h nessa cidade.
02:32 - Estou trancada no carro com ele.
21:21 - Ela me beija.
03:31 - Perco a dignidade, mas ganho um trago.
00:50 - Achei que era mais velho, mas só tinha 15.
22:51 - Perco uma cerveja, mas ganho um gole.
10:30 - Chove no boxe do banheiro. Chove quente.
04:30 - Ele se engana, não estamos esperando um ônibus.
23:12 - É quase como se estivéssemos no funeral.
04:13 - As cinzas se acumulam em volta dos meus sapatos.
02:20 - Fantasio sobre o outro carro destroçar minha porta.
16:30 - Chove dentro de mim, tão fino quanto as cinzas no chão do estacionamento. Durmo.
04:55 - Ele me explica o que é índigo pela cor do céu.
21:02 - Ela diz para tirar um adorno toda vez antes de sair de casa.
02:46 - Estou trancada dentro da minha cabeça, a boca costurada pela apatia.
17:14 - Digo para ela o quanto o céu por vezes explica o conceito de azul,
A ORDEM DOS ACONTECIMENTOS NÃO ALTERA A RESSACA
07:01 - Houveram mais bons momentos do que achava possível recordar.
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