... olhava a rua através da redinha da janela da sala. O parapeito ficava bem na aultura da sua cabeça, mas ela usava-o para se pendurar com os braços, escalando a parede com os pés. A mãe geralmente brigava quando ela fazia isso. "Suja a parede", ela dizia, mas Odette tinha acabado de tomar banho e seus pés lhe pareciam bem limpos. De qualquer forma, não havia ninguém ali para brigar com ela, o que a deixava bem à vontade para pisotear a parede o quanto quisesse.
A menina gostava de tirar os pés do chão, como os pássaros. A mãe dizia que seu nome era Odette por causa de um pássaro. Ela não entendia muito bem o porquê, afinal, era um pássaro muito estranho: ele nadava, tinha o pescoço comprido e belas asas brancas, mas era também uma menina que dançava com uns sapatos esquisitos. Odette não sabia como ele colocava as patinhas no sapato, mas sabia, sim, que seus pezinhos preferiam ficar livres e bem leves, com os dedos soltinhos.
Escurecia do lado de fora. Pela janela dava pra ver as manchas coloridas do pôr-do-sol e nuvens fofinhas que iam se espalhando e se dissipando, como os pensamentos da própria Odette, quando estava com sono. A menina parou um pouco de se dependurar e começou a observar o céu. "Ser uma nuvem deve ser bom", pensou. "Elas são branquinhas como pássaros, e voam também". Decidiu então que conversaria com a mãe e pediria pra se chamar Nuvem ao invés de Odette. Era mais bonito e, no final das contas, dava no mesmo.
Satisfeita com sua decisão, ela afastou-se da janela e começou a treinar movimentos de nuvem, enchendo as bochechas com ar e mexendo os braços bem devagar. Experimentou tirar um dos pés do chão, mas desequilibrou-se e caiu. Levantou-se e voltou a tentar. Pegou bastante ar dessa vez, abriu bem os braços e todos os dedos e levantou o pé esquerdo.
Sentiu lágrimas vindo aos olhos quando seu corpo bateu no chão, flácido. O choro e a raiva vinham menos pela dor da queda e mais pela frustração do fracasso; a humilhação do som dos ossos batendo contra a madeira, que anunciava sua derrota para toda e qualquer formiga que passasse por ali. Odette levantou-se, desajeitada, o rosto queimando de vergonha. Soluçou por alguns instantes, no trâmite da decisão quase inconsciente entre enroscar-se no colo de alguém ou manter a dignidade. A falta de controle sobre as próprias glândulas, no entanto, decidiu por ela e a menina correu rapidamente até a cozinha, abrindo o berreiro.
Zuzu estava de costas, lavando pratos, quando Odete entrou pela copa, já tomada pelo choro. A mulher se virou, enxugando as mãos. "Que foi, meu anjinho? Ô... O que aconteceu?" perguntou, se abaixando e tomando a menina no colo, com ternura. "Pronto, venha cá, venha! Precisa isso não, calma! Conte pra Zuzu o que aconteceu".
Odette se aninhou nos braços da mulher e afundou a cara molhada no seu ombro forte. Queria explicar o que sentia, o treinamento pra ser nuvem, a vontade de voar, mas a choradeira ainda deixava sua boquinha trêmula demais pra emitir consoantes e todas as suas vogais saíam cheias de vibratto e e lágrimas. Sentiu que Zuzu levantava e caminhava e o movimento, externo e independente do seu corpo, a acalmou.
"Respire fundo comigo, vá!" Pediu Zuzu, carinhosamente, e começou a inflar o peito e fazer barulho com o ar que entrava e saía de sua boca. A menina começou a fazer o mesmo, inconscientemente guiada pelo som da respiração de sua protetora. A calma foi tomando conta dela e, entre um soluço e outro, foi se sentindo cada vez mais preenchida pelo vapor da uma nuvem serena.
"Pronto, me diga o que aconteceu, meu passarinho." a voz retumbava pela caixa toráxica de Zuzu e a menina a escutava abafada e aconchegante. Entre soluços ocasionais, conseguiu reunir ar suficiente pra dizer um tímido "Eu caí" que lhe pareceu um tanto quanto patético. Sentiu-se um pouco envergonhada de chorar por uma coisa tão boba. Pararam no corredor. Com ar de reprovação preocupada, a muher começou a procurar em seu corpo por machucados. "Ô, minha filha, pra que isso? Já não lhe disse pra não ficar se dependurando daquela janela? Aí, ó, porque sua mãe briga..."
A menina impacientou-se. Queria negar, explicar que não tinha se machucado por causa de janela nenhuma, que estava era treinando para ser uma nuvem e que voar era muito difícil. Porém, entrecortada pelos soluços e pela indignação, sua fala saiu mais como: "Não, Zu... É mui difíciu... Eu quiria... Nuvem... Não consigo... Vuá... Muinto difíciu..."
Seu corpo tremia um pouco com o esforço e ele sentia alguma coisa escorrendo pelo nariz, dando uma coceira chata. Zuzu olhou-a com um ar derrotado, aquele de quem não consegue se aborrecer com pequenices e traquinagens. Limpou com um pano a mistura de fluidos so rosto da menina e a colocou no chão. Ofereceu-lhe a mão, que Odette apertou, e foram andando de volta para a cozinha.
"Venha, que eu vou te dar um brigadeiro... Mas, ó: não fale nada pra sua mãe, viu? Segredo nosso. Esses brigadeiros aqui são da sobremesa de amanhã."
O coração de Odette começou a bater mais forte e por um momento a menina esqueceu de todo o aborrecimento, das nuvens, dos pássaros e dos sapatos. Ela realmente adorava brigadeiro.
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