segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Pérolas aos Porcos

     Primeiro, enche meu coração. Com amor, com açúcar e afeto, com paisagens bonitas, com fantasia tola e colorida. Esquenta-me, "os olhos brilham". Sinto o fino cutucar de um galho verde, ao qual me seguro com esperança e até certa alegria. A canção da possibilidade me acalenta e então as coisas vão mal.
     Esse é o momento que entendo o que já sabia: é sempre a mesma armadilha e é sempre com convicção inabalável que nela me atiro. Avanço com a sede de um vampiro, procurando um pouco de sangue, de açúcar, de afeto, um suspiro... Ou ao menos um que não seja tão triste.
     Mas as coisas vão mal. Eu já sei o fim: reviravoltas, esperas, esperanças e o final, que é pior que bom e melhor que ruim. Faz-se então minha cova, que é cavada já antes dos créditos, mas na qual só me deito quando as luzes se acendem e a pipoca vai sendo varrida do chão.
     Odeio falsos finais felizes, quando olha-se para o horizonte como se houvesse continuidade, como se aquele navio não estivesse indo embora pra nunca mais voltar. Falsos! Fingidos! Odeio-os mais do que aos declarados finais tristes. Nestes tudo é claro; lágrimas e luto.
     Já os finais hipócritas... Esses doem! Prendem-se em mim como o piche no pé de um caminhante descalço na praia. Fazem-me amar, fazem-me querer e no fim, quando a protagonista olha ao longe e sorri sou eu quem sente sua dor e verte suas lágrimas.
     Por quê? Por que tenho eu que sentir na pele e nos ossos até o que não vem de mim? Olho, trêmula, para as feridas alheias e minhas pernas latejam. Já bastam-me os exageros naturais de leoa, basta o meu próprio e privativo drama, basta todo o sentimento transbordante que, mesmo sabendo ser excesso, sinto tão real e verdadeiro dentro de mim.
     Será que meu coração não enrijece? Parece ser minha sina envelhecer e não perder a ternura, mas sem saber endurecer por dentro como o gelo fino que me cobre por fora. Pero hay que! Hay qué? Hay! Ai...
     Sou um patético crustáceo que se machuca com os grãos de areia que o invadem. Cubro-os com finas e infinitas camadas de delicada madrepérola que é o choro da minha alma. Chamo-os de arte, dou títulos e nomes a eles. Sigo tal qual uma ostra que só mostrará suas pérolas em seu final hipócrita, depois de morrer.

     Morrer, claro, de amor demais.


"Ostra feliz não faz pérola."

Rubem Alves

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Dois



           Sento numa praça no coração surpreendentemente silencioso de uma Pituba em fúria. Divina sombra em meio aos prédios opressores e ao sol escaldante do meio dia.

           Ouço pássaros, árvores sacolejantes, carros sortidos, brisas improváveis e, bem ao longe, o mar. É um jardim decadente, feito sob medida para  a bruxa errante e sua fumaça mórbida.

           A conta é certa: um cigarro para o stress, o outro pelo tédio da espera.

           Ouço passos e um psiu, mas relaxo. Um era o vento numa folha, o outro uma cigarra. Respiro fundo e escuto. Tranquilidade impera.



     
           Fumo na janela. A conta é certa: um cigarro para o stress, o outro para a angústia.

           Choro, mas as lágrimas, como sempre, não caem. Acho que acabo vertendo-as para dentro, como se meu corpo se negasse a desperdiçar água com algo tão banal quanto a emoção. Um mero sentimento, abstrato demais para sua corpórea percepção.
         
           Fumo na janela e me pergunto: se eu dela pulasse, minha vida se apagaria como a brasa que desprende e some no espaço? Será que meu corpo cairia como uma bituca flácida e inanimada, enquanto a alma voaria aos ares como a fumaça?

           Choro em silêncio, agora. Sem som, sem lágrimas. "Me diga, qual fumaça você acha mais bonita, a que sai do cigarro, espiral, ou a que sai da boca, distorcida?"

           Hesito. De novo. Já não sei responder.

           Fecho a janela, subo os degraus com tontura.

           Busco o colo e o consolo, do tipo que só o asfalto e o travesseiro podem oferecer. Sonho. Durmo.



"Um dia olhou pela janela
E imaginou como seria o seu vôo até o chão
Mas quando pensou na sujeira que ela causaria

Desistiu, foi ver televisão"


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

19

... Em busca da torre negra.


Ela segura a respiração. O mundo está em calmaria suspeita e suspensas estão as horas, os segundos e a poeira. O ar zumbe com a estática e zomba dos frágeis guarda-chuvas. Vem aí tempestade, e vai ser das grandes: raios, trovoadas, tsunamis e ventanias.
   Seu cenho está franzido, os pensamentos em turbilhão, como turbinas de um avião. Talvez ela queira a tempestade, dessa vez. Talvez o medo paralisante tenha dado lugar a fervilhante inquietude, que lhe ataca com um frio na barriga e 19 peixinhos que nadam afoitos dentro dela.
   Veja como ela sua, como observa em silêncio a quietude. Tem o jeito de quem evitou por muito tempo o mar revolto, sempre deixando que ele rebentasse no limite da maré cheia e a esmagasse como a um grão de sal. Fez-se de espuma por medo do mar de fúria que, há tanto tempo, confinou num copo d'água.
   Sente o cheiro da tormenta. Ondas de 19 metros de altura, ventos místicos dos 19 cantos do mundo e trovões de 19 mil decibéis, para ensurdecer e sacudir a realidade inteira. Preocupa-se? Talvez. Agora ela entende que sua tempestade é grande demais para um copo d'água! Que tola foi, ao achar que conseguiria comprimir 19 oceanos em uns poucos centímetro cúbicos.
   Hesita, olha para os lados. Seus companheiros são as pedras, negras como torres, e a areia áspera a seus pés. E se for um truque? E se tudo culminar em uma chuva gelada e ordinária, encharcando seus cabelos e deixando-a presa numa ilha de calmaria e solidão? E se seu coração parar antes que sua enrustida tempestade saia do armário?
   "Prenda o choro, mocinha!" E ela obedece, tentando não deixar vazar aos poucos as águas que guardou para o inverno. Vira de costas, fecha os olhos, suspira. Escuta ao longe o bater de asas das formigas de chuva. Reza baixinho para um deus mudo qualquer, reza para Zeus e Netuno, reza para a lua, por pessoas que não mais vê, reza para si.
   Não quer ficar parada, mas não pode ir muito além. Não tanto por recalque, nem tanto por requinte: sente que precisa de impulso, sente e escuta o próprio pulso. Não é bem um desfalque, mas o negócio é o seguinte: até no precipício, 19 não é 20.
   Pede calma! Tudo vem, tudo vai, tudo passa e a vida é massa. Desvira-se, fecha as mãos em punho. Espera a tempestade com o peito cheio, os olhos abertos, a alma em chamas.






"(...) 19 é a idade em que você diz: Cuidado, mundo, estou fumando TNT e bebendo dinamite, por isso, se você sabe o que é bom pra você, saia do meu caminho... aí vai o Stevie!
(...) Mas ainda acho que essa é uma idade muito boa. Talvez a melhor idade. Você pode rolar no rock a noite toda, mas, quando a música cessa e a cerveja chega no fim, você consegue pensar. E sonhar sonhos grandes.
(...) Claro, você é um moleque que três anos atrás ainda não tinha cabelo no braço... mas e daí? Se você não começa pequeno demais pra sua calça, como vai caber dentro dela quando crescer? Deixe que ela rasgue, não importa o que os outros digam, esse é o meu ponto de vista; sente-se e fume a calça.
(...) De um modo ou de outro, não peço desculpas. Eu tinha 19 anos."

Stephen King, "Sobre ter 19 anos"

Efebo

Não é bonitinho? Que um um menino com olhar de cãozinho me siga de longe com a mente, pense em mim em seus sonhos turvos... Mas esse não é você, se não me engano. Há pouco de angelical na sua aura, que causa estremecimento nas menininhas por quem passa.
   O que me segue são seus olhos escuros e atrevidos e não apenas uma mente frágil, mas um poço de desejo que sinto roçar na minha nuca. Como disse Nabokov, é fácil reconhecer uma ninfeta quando se sabe o  que está procurando. Foi num estalo que descobri o que você era e a compreensão transformou-se em condenação quando percebi o que isso me tornava, de certa forma.
   E por que o seu olhar persistente e seu corpo, esguio de juventude, me tornam qualquer coisa além do que eu pensava ser? Ensaio um sorriso vesgo. Povoas meus sonhos acordados com sua boca fresca e seus cabelos, ainda tão infantilmente cortados. Esses muros só são altos quando a gente é pequeno? (...) Talvez, mas dois pares de anos me tornam a mais perversa criminosa aos olhos desavisados de quem circula ao redor do grande foco de luz hipnótica que me lanças.
   Seus olhos... São eles os culpados de todo o meu tormento! Seus olhares, que insinuam muito mais do que pode ser lido na íris, suas pupilas, que sonho ver dilatadas quando estivéssemos mais próximos do que um segundo está do outro. Vê? Aos olhos da leu posso ser algoz, mas a seus olhos sou vítima sofrida e deles sou escrava.
   Nunca entendi bem por que é que o ovo caía de cima do muro, mas começo a ter ideias. Talvez eu também me espatife no chão se tentar pular um muro alto demais. A questão é: será que ainda posso descer pelo mesmo lado que escalei? Será que a descida não é igualmente mortal para ambos os lados? O ovo espera, inquieto, em cima do muro.
   Não escreverei seu nome, porque não posso, mas ele ecoa na minha lembrança. Não descreverei seu rosto, pois isso seria como marcar a ferro o que já está pintado e contornado na minha carne.
   Só resta a espera e a espera me mata de dúvida. Quando seus músculos enrijecerem com o peso da idade e sua coluna se alongar para além da minha, para além do muro, será que então seus olhos ainda serão negros, tentadores, irreverentes, meus? Só restam 4 anos e a espera me mata.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Malakof

     Saio pelo portão da frente e o sol ainda está quente o suficiente para me fazer suar, mas já não é brilhante o suficiente para fazer parecer um filme. Meus sapatos machucam a cada passo. Piso mais forte. O instinto seria mancar, mas ignoro. Quando eu era pequena estava sempre na ponta dos pés, mas não hoje.
     Hoje tenho pressa de chegar ao ponto de ônibus, mas não é por isso que eu piso forte. Me concentro na dor, por um segundo tirando o foco da música seca que escuto porque preciso, mas que já me cansa. Enterro os pés no chão, quiçá por puro masoquismo, quiçá para purgar alguns pecados. Talvez, apenas talvez, eu acabe me acostumando com a dor e caminhar na rua seja como caminhar na ponta dos pés no chão de madeira de um apartamento na federação.
     Não tenho sido uma pessoa muito boa... Tem menos a ver com sábado e mais com o cheiro ruim que sai das minhas orelhas. Aconteceu assim: passei os dedos por cima e senti o cheir da minha alma, quase como Doryan Gray. E sim, ela fedia. Bom, não costumava feder quando eu era criança. Tirei depressa meus brinquinhos, na esperança de limpar com sabão aquele musgo, mas o fecho escorregou entre meus ensaboados dedos e fugiu ralo abaixo com um sorriso irônico em seus lábios de fecho (alguns diriam que foi um soluço).
     Talvez esse tipo de podridão não se limpe com sabão. Quiçá com um tantinho de sangue? Quem sabe com o líquido de algumas bolhas no calcanhar? ... Piso mais fundo. Quase já não sinto mais a dor. Esfrego mais força o asfalto na pele. Dizem que eu caí, "dizem por ai". Mas eu podia jurar que nada fedia quando eu andava na ponta dos pés e usava brincos de ouro.
     Será que eram os brincos de ouro que me deixavam um cheirinho de leite de rosas nas orelhas? Ou era a inocência? Será que brincos de ouro ainda poderiam resolver meu problema? Acho que são muito caros, anyway.
     Meu andar já está ritmado ladeira abaixo. A dor fica bem apagada, como quando dançava numa sapatilha de ponta. Me sinto vazia sem ela e seu doce cutucar de carrasco, que chicoteia e faz os bois andarem mais depressa. Não consigo tomar a decisão! Talvez devesse também comprar umas viseiras que não me deixassem olhar para além da minha leira de trigo... A leira que me cabe arar nessa plantação sem fim e sem propósito.
     Enquanto o chicote estala e pede pressa, "eu me recuso, faço hora, vou na valsa". Danço com graça, talvez para me sentir como uma princesa, ou mesmo para sentir mais a ferroada dos sapatos de cristal quebrando. Sabe, eu já tive belos brincos de ouro, como uma princesa. Eu apenas não consigo lembrar onde os coloquei!
     Já não há sol, sapatos, barulhos de escapamento ou pontos de ônibus. Há o terror de um dia terminando (já acabou, inocente), o abafado de nuvens que insistem em não chover, o medo da insônia e um temor de assistir ao amanhã com os mesmos músculos doídos de hoje e os mesmos olhos de ressaca.
     Ah, não os de Capitu, que eram profundos e gravitacionais... Não. De fundo eu tenho olheiras, apenas, e a gravidade é só uma ameaça contante do tempo, que promete desabar minhas carnes com o passar dos dias. A ressaca? Há. Se o mar me puxasse para sí eu lhe seria grata. A ressaca que tenho é de vodka e culpa.

     "Nenhuma taça me mata a sede", mas, como Alzira, descubro que "o chão do Recife afunda um milímetro a cada gole". O tédio briga com o medo e se engalfinha com a culpa pelo domínio de mim: luta de gigantes, vale-tudo, UFC.
     Entenda, no filme a princesinha bonita ficou com o mágico e a bruxa feia de coração partido e enfeitiçado voou para longe numa vassoura, soltando uma fumaça negra como um cigarro risonho e louco. Bom, não sou a princesa branca das bolhas de sabão e neblina colorida. Talvez eu ainda possa ser o mágico? Há. Não sou inteligente e determinada o suficiente... Talvez o macaquinho engraçado? Algum outro personagem secundário?
     Por favor, só me diga onde compro novos brincos de ouro! Aliás, não me fale nada. Não sei se tenho mais medo de ficar sem eles ou de encontrá-los. E se minha orelha não cheirar melhor com eles? E se eu deixar seus fechos escorregarem pelo ralo com um sorriso irônico? (Soluço, darling, so-lu-ço).
     Só posso torcer para que a bruxa esteja me esperando com um jardim no meio do asfalto, na rua do Hospício. Piso com força nos tijolos amarelos, os sapatinhos vermelhos machucam, mas já consigo ver a torre! Em que paraíso distante Alzira espera por mim?






    

sexta-feira, 7 de março de 2014

Pigarro (ft. Tom Nobre)

O frio que desce em brisa dos seus lábios Corta mais que a navalha desenhada no seu braço Emudecidos como dois otários O frio quebra o gelo pra cortar o embaraço


Como foi que nos perdemos aqui? O peso morto do seu coração só me faz mal Afinal, pra onde mais podemos ir? Se você queima folhas, minha boca, não discute, desconversa e tal, e tal


Tem um fantasma Que sapateia na minha sala Eu gosto do tom de vermelho desse sofá Tenho sapatos Que sapateiam na entrada Eu gosto de marasmo e da brisa do mar


Outros planetas Que se deslocam pelo céu Não sei se são satélites ou folhas de chá Outras palavras Já não se prendem no papel Camadas e camadas de uma bolha de ar


Em meio ao eco surge um arrepio Correu em minha espinha afiado calafrio Um olhar morto, um sorriso vazio Eu chego a desejar por um silêncio mais macio


E se um dia eu atravessar Pelo seus pensamentos e um sorriso surgir Afinal, do que podia se lembrar? Se os momentos bons parecem sombras Que se escondem e não cansam de fugir

Tem um fantasma Que sapateia na minha sala Eu gosto do tom de vermelho desse sofá Tenho sapatos Que sapateiam na entrada Eu gosto de marasmo e da brisa do marOutros plantas Que se deslocam pelo céu Não sei se são satélites ou folhas de chá Outras palavras Já não se prendem no papel Camadas e camadas de uma bolha de ar

Humor Blasé



Não queria dizer nada Um toque vale mais Que milhares de palavras Convertidas em sinas de fumaça Que entre os lábios se desfaz


Nunca pude dizer nada O símples pensamento Já me põe numa cilada Uma música diz mais Que palavras Que só lê quem é atento


E no imaginário do retrato Que eu faço de você Já tem um par de óculos E o seu humor blasé

E as palavras bem pensadas Que são ditas sem querer Disfarço entre tragadas Desse seu humor blasé


Me encosto na piada Silêncio é bom pra quem Não está desesperada O que me fode mesmo É a estrada E não saber o que é que vem


Bem queria dizer tudo Cuspir o mal-estar De um sonho meio turvo Preencher esse vazio Absurdo Bem queria te falar


Que no imaginário do retrato Que eu faço de você Já tem janelas soltas E o seu humor blasé

E as fachadas desmembradas Que no fundo ninguém vê Me trazem nostalgia Desse seu humor blasé