segunda-feira, 26 de maio de 2014

Malakof

     Saio pelo portão da frente e o sol ainda está quente o suficiente para me fazer suar, mas já não é brilhante o suficiente para fazer parecer um filme. Meus sapatos machucam a cada passo. Piso mais forte. O instinto seria mancar, mas ignoro. Quando eu era pequena estava sempre na ponta dos pés, mas não hoje.
     Hoje tenho pressa de chegar ao ponto de ônibus, mas não é por isso que eu piso forte. Me concentro na dor, por um segundo tirando o foco da música seca que escuto porque preciso, mas que já me cansa. Enterro os pés no chão, quiçá por puro masoquismo, quiçá para purgar alguns pecados. Talvez, apenas talvez, eu acabe me acostumando com a dor e caminhar na rua seja como caminhar na ponta dos pés no chão de madeira de um apartamento na federação.
     Não tenho sido uma pessoa muito boa... Tem menos a ver com sábado e mais com o cheiro ruim que sai das minhas orelhas. Aconteceu assim: passei os dedos por cima e senti o cheir da minha alma, quase como Doryan Gray. E sim, ela fedia. Bom, não costumava feder quando eu era criança. Tirei depressa meus brinquinhos, na esperança de limpar com sabão aquele musgo, mas o fecho escorregou entre meus ensaboados dedos e fugiu ralo abaixo com um sorriso irônico em seus lábios de fecho (alguns diriam que foi um soluço).
     Talvez esse tipo de podridão não se limpe com sabão. Quiçá com um tantinho de sangue? Quem sabe com o líquido de algumas bolhas no calcanhar? ... Piso mais fundo. Quase já não sinto mais a dor. Esfrego mais força o asfalto na pele. Dizem que eu caí, "dizem por ai". Mas eu podia jurar que nada fedia quando eu andava na ponta dos pés e usava brincos de ouro.
     Será que eram os brincos de ouro que me deixavam um cheirinho de leite de rosas nas orelhas? Ou era a inocência? Será que brincos de ouro ainda poderiam resolver meu problema? Acho que são muito caros, anyway.
     Meu andar já está ritmado ladeira abaixo. A dor fica bem apagada, como quando dançava numa sapatilha de ponta. Me sinto vazia sem ela e seu doce cutucar de carrasco, que chicoteia e faz os bois andarem mais depressa. Não consigo tomar a decisão! Talvez devesse também comprar umas viseiras que não me deixassem olhar para além da minha leira de trigo... A leira que me cabe arar nessa plantação sem fim e sem propósito.
     Enquanto o chicote estala e pede pressa, "eu me recuso, faço hora, vou na valsa". Danço com graça, talvez para me sentir como uma princesa, ou mesmo para sentir mais a ferroada dos sapatos de cristal quebrando. Sabe, eu já tive belos brincos de ouro, como uma princesa. Eu apenas não consigo lembrar onde os coloquei!
     Já não há sol, sapatos, barulhos de escapamento ou pontos de ônibus. Há o terror de um dia terminando (já acabou, inocente), o abafado de nuvens que insistem em não chover, o medo da insônia e um temor de assistir ao amanhã com os mesmos músculos doídos de hoje e os mesmos olhos de ressaca.
     Ah, não os de Capitu, que eram profundos e gravitacionais... Não. De fundo eu tenho olheiras, apenas, e a gravidade é só uma ameaça contante do tempo, que promete desabar minhas carnes com o passar dos dias. A ressaca? Há. Se o mar me puxasse para sí eu lhe seria grata. A ressaca que tenho é de vodka e culpa.

     "Nenhuma taça me mata a sede", mas, como Alzira, descubro que "o chão do Recife afunda um milímetro a cada gole". O tédio briga com o medo e se engalfinha com a culpa pelo domínio de mim: luta de gigantes, vale-tudo, UFC.
     Entenda, no filme a princesinha bonita ficou com o mágico e a bruxa feia de coração partido e enfeitiçado voou para longe numa vassoura, soltando uma fumaça negra como um cigarro risonho e louco. Bom, não sou a princesa branca das bolhas de sabão e neblina colorida. Talvez eu ainda possa ser o mágico? Há. Não sou inteligente e determinada o suficiente... Talvez o macaquinho engraçado? Algum outro personagem secundário?
     Por favor, só me diga onde compro novos brincos de ouro! Aliás, não me fale nada. Não sei se tenho mais medo de ficar sem eles ou de encontrá-los. E se minha orelha não cheirar melhor com eles? E se eu deixar seus fechos escorregarem pelo ralo com um sorriso irônico? (Soluço, darling, so-lu-ço).
     Só posso torcer para que a bruxa esteja me esperando com um jardim no meio do asfalto, na rua do Hospício. Piso com força nos tijolos amarelos, os sapatinhos vermelhos machucam, mas já consigo ver a torre! Em que paraíso distante Alzira espera por mim?






    

Nenhum comentário:

Postar um comentário