Está ouvindo? Esse é o som do tempo se esvaindo. Esse tique constante que se infiltra nas nossas vidas e almas. Quase imperceptível e quase invisível, mas está lá. Impregna nossas entranhas e corre em nosso sangue, todos dançamos ao seu ritmo doentio. Consegue escutar? É o som da morte.
É um zumbido infinito, um pulsar lento e frenético, é o nó na garganta de um dia de sol. É o homem que pede ao seu filho que o espere, que não desista dele e implora ao ar para permitir sua respiração. Mas de que adianta? Ele já está morto na mente das pessoas e seu coração já bate no ritmo Dela.
Estamos todos condenados. Andamos em uma única direção de cabeça baixa, para não ver o fim da estrada. Mas já sabemos o que há lá, e o tic-tac de nossos relógios de pulso zombam da nossa ingenuidade, pois o tempo está se esvaindo e perdendo-se para sempre.
Dancem, dancem, DANCEM! Esse é o ritmo do vento e das trovoadas. É o som que todos vamos ouvir algum dia. Não importa a sua idade ou sua honra, o espetáculo acaba. Todos nascem nus e sozinhos e assim se vão. Constroem casas e escrevem livros. Mas todos gingam ao tempo Dela. Está ouvindo agora? É uma batida crua e solitária. É o som da morte.
Com o vento batendo no rosto e uma sensação de liberdade correndo pelas veias, Sam pedalava no limite de velocidade que suas pernas permitiam. As árvores passavam ao seu lado como relâmpagos verdes e iam desaparecendo atrás dele. Apesar da calma que embalava seu espírito, o coração ainda batia com rapidez.
Sim, sim, sim, sim, SIM. Ela disse sim. Ficava repassando o momento dez vezes por segundo. Saboreava o instante e cada letra daquela palavra miúda que beijara os doces lábios de Elise. Pensou nela e em seus olhos. Lembrou-se da frieza daquela pele contra o calor da sua e distraiu-se com isso.
Com a mente desviada do caminho, Sam perdeu o controle sobre as próprias pernas e a velocidade o derrubou como a uma criança que perde o equilíbrio no susto. Ficou alguns segundos parado, sentindo o peso da bicicleta sobre os quadris se recuperando da súbita interrupção de seus pensamentos. Levantou-se e sacudiu a terra da camisa. Havia sangue em seu rosto e o joelho ardia.
“Merda”, ele pensou, e foi levando a bicicleta ao lado do corpo pelo resto do caminho até em casa. Deixou-a nos fundos e lavou o machucado na pia do jardim. Tirou o tênis para não fazer barulho e entrou sorrateiramente pela porta dos fundos, tentando impedi-la de ranger. Pegou uma maçã na cozinha e subiu as escadas como se pisasse em ovos. A última coisa que queria era encontrar alguém.
Suas esperanças ruíram quando entrou no quarto e viu o contorno negro dos cabelos de Marie por cima do encosto da cadeira. Ela se virou, segurando cinco ou seis folhas de caderno em cada mão. Sorriu da maneira mais infantil que uma pessoa conseguiria e disse:
- Olá, Romeo... Caiu do cavalo branco? - Me dá esses papéis, Marie. - Own... Mas estes poemas são muito fofos. – Disse ela, cínica.– Já falou para Elise que ela é “como a neve pura da manhã”? - Vem cá, sua criança maléfica superdotada! – Irritou-se Sam. – Me devolve a porcaria desses papéis! – Vociferou, avançando na direção dela. - Tá booom... Que mau humor. – Cedeu ela, devolvendo as folhas a contragosto.
“Impossível uma pessoa de oito anos ser tão irritante.”, pensou ele, olhando pelo canto dos olhos enquanto Marie saltitava porta afora. Usava uma sapatinhos com meias brancas até os joelhos, vestidinho vermelho e fita na cabeça. Um perfeito anjinho.
Sam arrumou os poemas e escondeu-os no fundo falso da gaveta. Tirou a camiseta e as meias e jogou-se na cama. Decidiu que não ia deixar que nada estragasse o seu humor. Por mais que o mundo tentasse, não lhe apagaria o sorriso dos lábios.
Eram quatro os filhos de Thomas Viena. Simétricos, talentosos, educados e inteligentes. Duas meninas comportadas passavam o sai a bordar e estudar. Seu bondoso pai lhes concedia um passeio agradável pelo jardim ao final do dia, em apreciação ao seu esforço. Dois meninos comprometidos estudavam economia e história. Seu orgulhoso pai lhes levava a todo canto, exibindo os garotos aos colegas e subordinados.
Foram quatro os filhos de Thomas Viena. Respondiam o que lhes perguntassem e falavam de todo e qualquer assunto que lhes pedissem. Até que se calaram. Para sempre. Por vontade própria ou pela falta dela. Talvez por sentirem falta de si mesmos. Calaram-se e, desobedientemente, não responderam aos chamados por seus nomes. Nunca mais.
E naquele dia, não foi Olívia encontrada envenenada, não foi Thereza vista pendurada da janela. Não se achou Pedro com um punhal no peito e nem Thomas Júnior baleado na cabeça. Aquele foi o dia fatídico. Foi o dia em que morreram os dignos filhos do senhor Viena, afogados os quatro na sombra de um só nome.
Sam riscou o vidro embaçado com o dedo, a toalha ainda enrolada nos quadris. Aquela música não lhe saía da cabeça. Mas era exatamente isso que sentia, pensou. “I’ve got a feeling if I sang this loud enough, you will sing it back to me”. Finalmente ele havia notado alguma reciprocidade no rosto frio dela. Até aquela hora, havia sido como se sábado nunca tivesse existido.
Sábado... Um sorriso sombreou-lhe os lábios ao pensar na palavra. Saiu do banheiro e colocou o jeans e a camiseta do Hellboy. Mirou o corpo magro no espelho e se perguntou se beijaria um cara assim caso fosse uma garota. Preferiu nem responder à pergunta e saiu porta afora, sem que Marie percebesse. Impressionante como uma criatura de oito anos podia ser tão curiosa e inconveniente em certos momentos.
Pegou a bicicleta e pedalou até o clube de tênis. Quarta feira, só umas poucas pessoas iam lá. Foi pra praça atrás da última quadra e ficou sentado em um dos bancos de pedra, olhando umas crianças correndo atrás de um frisbee. Conferiu o relógio – isso estava virando um vício – e começou a bater os pés em um ritmo qualquer, para passar o nervosismo. Será que ela tinha lido o bilhete? Por que raios ele tinha escrito um bilhete?
Estupidez pura, claro. Qual era a dificuldade em falar diretamente com alguém com quem já se ficou? Conhecia um bom número de pessoas que viraria os olhos ao saber que um ser de 16 anos era incapaz disso. Mas ele chutaria que 95% destas pessoas nunca haviam conhecido ninguém como Elise. Ou, pelo menos, nunca tinham gostado tanto de alguém tão gélido.
Só o jeito de andar dela já passava mais segurança do que ele jamais teria e maneira com que ela simplesmente ignorava os olhares ardentes que ele tentava lhe lançar deixava em frangalhos a pouca atitude que ele conseguia reunir. Ela era completamente ilegível e isso tanto lhe seduzia quanto lhe enlouquecia. Mas tinha sido tão diferente aquele dia, quando eles finalmente ficaram juntos naquele mesmo banco.
A imagem assustadora de Elise havia se desfeito junto com o gelo e, sem armaduras, ela era ainda mais linda. Mas sábado estava agora tão longe que Sam sentia medo de novo e a idéia de que ela não viria não abandonava seus pensamentos. Mas então, mãos frias enlaçaram seus ombros por trás e um perfume conhecido chegou até ele. Seu pulso parou. “Como sempre” pensou ele.
Minha definição de amizade se baseia em duas coisas. -ele disse- O respeito e a confiança. Esses dois fatores precisam necessariamente estar presentes. E deve ser recíproco. POde-se ter respeito por alguém, mas, se não houver confiança, a amizade vira pó.