terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Odile III

     "Depois de um tempo - disse a senhora a ela - "você vai acabar percebendo que a vida é longa o suficiente pra que muita merda aconteça. Essa é a verdade. O tempo... Ele não cura nenhuma ferida, mas ele te permite ferir-se tantas vezes que as feridas vão se tornando ordinárias."
     Odile não soube bem como reagir àquela declaração. Todas as vozes e pessoas lhe pareciam borradas, mas aquela figura subitamente se fez nítida - e embaraçosa, em algum nível.
     "Sei que agora vai parecer insensível da minha parte, mas tampouco tenha pressa pra entender conselhos de pessoas mais velhas. Viva sua dor e seu momento. O tempo também não tem pressa de ensinar nada a ninguém."
     A senhora lhe tocou o ombro com um semblante de pesar comedido, porém honesto - ainda que de forma estranha. Odile teve a sensação de que a compaixão da mulher não fora gerada por aquela infelicidade específica, mas por uma infinidade de segundos que se seguiriam até o fim da sua vida durante os quais teria que conviver com suas mágoas.
     Para todos os lados que olhava, Odile via a dor e cada parte do seu corpo parecia ter uma fina agulha enfiada em toda a cobertura de pele. A dor era um terremoto que brotava no âmago, do colo do seu morto útero em luto. Parecia carcomer seus nervos como ferrugem aos cabos de eletricidade, entupindo-lhe de varizes informacionais. Onde estaria? Não se lembrava de ter chegado àquele supermercado fluorescentemente iluminado e segmentado em extensas estantes e corredores de produtos.
     Sem mais palavras, a anciã seguiu em direção ao caixa preferencial e deixou Odile - ainda meio estarrecida - sozinha na fila de compras rápidas. Olhou para o conteúdo da própria cesta: um saquinho de sequilhos, café, cigarro, 3 pacotes de macarrão instantâneo e um frasco de pepinos em conserva: do mexicano, não do suave.
     "A dieta de uma campeã" pensou, rindo da própria ironia. Assombrou-se: já nem lembrava mais do que era o riso, o deboche. Uma parte dela se sentiu ultrajada, como se aquele humor tirasse a importância do seu luto. E de alguma forma tirava mesmo, mas sentiu o fenômeno muito mais como um descarrego, um alívio do peso, do que como uma ofensa à sua própria dor.
     Sozinha, consigo, Odile riu de si mesma a fila do supermercado. Os olhares confusos dos outros clientes apenas tornando tudo ainda mais cômico, Pagou as compras contendo-se para não rir diante da atendente do caixa. Não sabia quem tinha colocado dinheiro na sua conta... Talvez o pai, talvez o próprio Leonardo.  Sim, devia ter sido um deles. Não lembrava da última vez que havia sequer trabalhado. Agradeceu à atendente e recolheu os sacos plásticos, colocando-os dentro do carrinho de compras de arrastar.
     "Sou como uma velhinha" pensou, olhando de relance para a senhora que lhe falara na fia do caixa. "Arrastando esse troço, usando esse vestido quase que saído do armário de uma viúva amargurada... Que no fundo é o que sou."
     Desviou o olhar antes que a idosa o percebesse e dirigiu-se à saída, arrastando o carrinho atrás de si. Cruzou a rua vazia na faixa de pedestres e desceu o declive da sua rua até bater os pés na soleira da porta. Digitou a senha a fechadura eletrônica - sem pensar - e abriu a porta de madeira escura. Ao entrar, notou que uma grande quantidade de envelopes brancos se acumulavam num montinho ao lado do tapete. Abaixou-se, agarrando-as nas mãos e arrastou o carrinho até a cozinha, vagamente olhando os remetentes dos envelopes.
     Um flor murchava num vaso cheio de água velha e amarelada, no centro da mesa da cozinha. Um bilhete jazia sob seu peso. Odile pôs os envelopes junto ao bilhete e pôs-se a guardar as compras no armário, coisa que não levou muito tempo, devido à quantidade de itens adquiridos, mas que lhe permitiu perceber uma grossa camada de poeira as prateleiras. Seu nariz coçou e ela reprimiu um espirro.
     Pegou a flor, parando um segundo para lembrar de alguma coisa. Franziu o cenho. Agarrou o vaso e jogou a água suja na pia e a flor murcha no lixo. "Já estava morta quando me deram" pensou, o remorso apenas passando longínquo e dissipando-se junto com o cheiro doce de decomposição.

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