segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Tentativa 40 - 23/10/15

Está o cientista em seu laboratório de janelas duas, agora cerradas, e a escuridão é total. Acende uma lamparina azul e a maneira como a luz toca livianamente seus objetos estranhos e sombrios. Revela formas parciais, dando espaço à escuridão. É quase como se não quisesse tocas os frascos de vidro e os fótons, todo o seu potencial luminoso, tratam de não o ser e não molestar as superfícies disformes do lugar.
O cientista admira, paralisado, a visão de seu laboratório banhado naquela luz. Sente-se em uma cidade à noite. A sensação das ruas frias sob seus pés lhe causa um arrepio. É lindo e solitário. Desfruta da solitude e do silêncio absoluto por alguns instantes. De a pouco vai perdendo a noção do espaço. As formas bordeadas de azul celeste já lhe parecem ondas eletromagnéticas no vácuo.
Pensa escutar um ruído. Bah, deseja. Deseja escutar alguma coisa, como que para certificar-se de que o silêncio advém de fora e não de dentro, de uma súbida surdez que tornaria a vida insuportável. Numa cidade à noite o ar seria frio à pele e a secura lhe castigaria a cara... Mas haveria o vento, os malditos automóveis, um mendigo, algum bendito som!
Coça o catarro da garganta. Pigarro. Será que sua solitude se transforma em solidão? Mas é um cientista! As pessoas, o barulho... Isso atrapalha os estudos, por isso buscava a calma. Mas que era mesmo que buscava? A dizer... Com seus estudos. Qual era o objeto de pesquisa que valia o preço da solidão? Alí só se via objetos disformes, contornos.
Escuta uma catraca de bicicleta do lado de fora. Pensa escutar. Escuta? Pensa nela. Mas ela nem nunca andava de bicicleta! O cérebro encontrou foi um atalho atrevido e malposto para ter a desculpa de sua imagem projetada na parede do laboratório. Será que a visão doeria? Estaría alí afora? Sente o impulso de abrir as janelas, mas resiste. Ela poderia estar aí a dois metros, um metro, a mera espessura da parede (quanto mediria, deus?). Andando numa bicicleta vermelha, assobiando com óculos escuros uma melodia tranquila.
Sim... Tranquila, mas melodia, ainda assim. O silêncio do laboratório lhe parece desolador comparado com sua suavidade. A luz azul se punha asquerosa a seus sentidos quando contrastado com o vermelho da bicicleta imaginária. Como deslizava! Mais fluidamente que as lágrimas duras que brotavam e escorriam por seu rosto.
Chuva. Cai do lado de fora e bate na janela, quebrando o silêncio de morte que antes lhe ensurdecia. Salva-lhe da loucura, a chuva. As gotas lavaram os vidros sujos da janela. Agora podia respirar, agora lhe ocorria que o que lhe faltava era o estudo, o objeto de estudo.
Senta-se na escrivaninha, põe as luvas. Tira da gaveta uma carpeta de arquivos velhos, empoeirada. Coloca em frente de si e, mãos enluvadas sobre o papel-madeira, hesita. Hesita de medo. Hesita porque não tem certeza se a luz azul antes inflama ou esfria as substâncias que aí estão guardadas, impressas em papel.
Por fim, tiralas do envelope, cuidando para não tocarlas com a pele. Põe-se tenso. Agarra um frasco com substâncias vaporosas e, com um conta-gotas, sorve daí um pouco do seu conteúdo. Mira o conta-gotas. Dentro do vidro há um líquido transparente, agora azulado pela luz do laboratório, que um facilmente trocaria por água mineral.
Mas não. O líquido era feito de uma substância muito mais perigosa, destilada por ele mesmo das glândulas de um animal ferido em seu íntimo. Apoia o braço na mesa, as mãos tremem. Não quer errar a medida exata e destruir o laboratório na explosão. Además, não sabe qual reação ocorrerá. É um pensador empírico, o que procura não está nos livros e a metolodogia não está estabelecida.
"Gravando". Aperta o botão do dispostivo de registro. Diz data e hora estrelares, estado de espírito, umidade do ar, condições de temperatura e pressão. Muita.
Afinal, aperta com cuidado o conta-gotas. Um fiapo de substância cintila pelo ar e em milissegundos cobre a curta distância entre mão e papel. O impacto quebra a tensão superficial do líquido (mas, repare, não a tensão profunda do cientista) e este se esparrama pela sua superfície.
Por um momento nada ocorre. Correm alguns segundos e alguns jatos de sangue pelas veias do seu corpo, bombeadas pelos ventrículos potentes. Lentamente a substância no papel começa a liquefazer-se, como se fosse tinta reagindo a solvente. Tremula. O cientista fica sem reação. O cérebro, fascinado com o efeito, não quer dar ordens às mãos para que interrompam o processo. De golpe, o coração toma controle e, num pulso firme, exige atitude responsiva. Pega o papel e enxuga dele a substância. As linhas da imagem estão distorcidas, mas, com algum esforço, distinguíveis.
O cientista suspira, meio assustado, meio aliviado. Ainda não estava preparado pra esquecer.
"Fim de Tentativa 40". Desliga o dispositivo de registro e guarda os equipamentos. Lança um último olhar a seu laboratório... A luz azul lhe parece conferir um tom perigoso, fantasmagórico a tudo. Dega-a e esfrega os olhos cansados. Não tem condições de continuar os estudos, muito menos condições normais de temperatura e pressão.
Queda em silêncio por alguns momentos e percebe a falta de chuva. Por aí que devem ter secado as nuvens, afinal. Abre as janelas: é de manhã. Será um lindo dia.

Um comentário:

  1. Poderia passar dias lendo seus textos, são incríveis. Você é incrível!

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