sábado, 21 de fevereiro de 2015

Canções pra ninar Eu


     Vai embora e me deixa a pia cheia de louça e o peito vazio. Na boca, um sorriso cansado, na casa, um cheiro de pipoca. Aquela de queijo, sabor microondas, que chega agora deu vontade. E eu que sempre amei a solidão tenho agora ansiedade. É urgência de ver, falar, acontecer, participar, conversar, ser. Viver lá fora. 
     Mas, mesmo assim, vai embora.
     Deixa na boca o sabor do café preto não tomado, das palavras não ditas. No pulmão, espaço para os becks ainda por vir, na mente, as conversas que já aconteceram só de antecipação, de sonho, de ansiedade. Ansiedade ou fome? Desejo de antropofagias de todos os tipos! Comer ideias, pessoas, músicas, lábios, dentes... Dilacerar a carne e sugar o sangue e o sumo da alma.
     Mas hay que respirar e hay que dormir. Por mais que as luzes me façam cócegas no espírito, sempre amei a solidão por um motivo bem humano, até: preciso dela. Fisicamete, mentalmente. É entre quatro paredes que se desacelera o pulso e é enfim possível escutar outros sons, outros rítmos invisíveis. 
     É também como uma recarga: o sono cheio de sonhos fantásticos, convincentes, que me permitem acreditar mais em mim e menos na realidade que me afunda e se afunda no meu peito com todo o peso do tempo, dos anos, da histeria e do desamparo. É preciso dormir para calar a voz que me diz em tempo integral todas as coisas ruins a meu respeito. Aquelas que sei, mas nas quais tento não acreditar.
     Disseram-me que há uma chance, se recuperar isso a que chamam de confiança, auto-estima. Uma chance real de encontrar um caminho e até algumas luzes coloridas e "flair". Precisa-se dormir para calar a voz que diz as verdades, boas e ruins, para escutar a gargalhada e os sussurros de horror da voz que diz loucuras e conta estrelas enquanto atira fogos de artifício contra as pessoas e as assiste explodir. Ai, preciso tanto, preciso dormir.
     Então, por fim, vai você também embora! Você que está ai na frente, traduzindo em palavras meus pensamentos. Você que eu chamo de "eu", de nós e que é os três pronomes, a depender do momento. Desliga-te um pouco e deixa-me com os outros "eu"s, aqueles que espreitam no ressonar da minha adormecida boca, e com os os outros também, os desconhecidos. Deixa-me com as faces anônimas que reconheci na rua e que estão gravados nas fotos guardadas nos porta-retratos dos sótãos da minha mente.
     Enquanto caminha pelos corredores de mim, em busca dos seus secretos aposentos de descanso, canta canções de ninar ao meu coração, para que ele se acalme. Massageia meus músculos rijos com promessas de que haverá algum amanhã; uma alvorada melhor que a última e mais cheia de cores e promessas. Fala-me de um sol mais quente, que me encha de coragem e doure minha pele.
     Mas, quando chegar ao fim do corredor, apague as luzes para que eu possa enxergar  os fogos de artifício e as estrelas e escutar  canção do tempo. 

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