quinta-feira, 19 de agosto de 2010

N°11


        Já era mais de meia-noite, porém, ela não tinha a menor intenção de dormir. Sabia o que vira aquele dia e só conseguia pensar nisso agora. A geladeira. Não fora sua imaginação: aquele brilho incomum, a rajada de vento quando estava desligada da tomada...
        Ela se levantou e calçou as pantufas. Abriu vagarosamente a porta do quarto e prestou atenção aos ruídos de respiração das pessoas dormindo. Apertou os olhos para tentar enxergar, mas estava mais que escuro e ela se sentiu segura para realizar seu plano.
        Fechou a porta com cuidado e escolheu no armário o casaco mais quente que tinha. Pôs uma lanterna e uns biscoitos que surrupiara da dispensa  numa bolsa e calçou as botas que ganhara no natal passado. A ansiedade tomava conta de seus dedos e tornava quase impossível a tarefa de amarrar cadarços.
        Por fim, com todos os cordões domados e a sacola no ombro ela deixou  o número 11 e foi seguindo pelo corredor que levava à escada em espiral. Do lado direito ficava a metade da casa utilizada como moradia da família e na esquerda estavam os quartos - pensão.
        Cuidadosamente, ela avançou devagar, mergulhando na escuridão. A maior parte dos inquilinos passava dos 60 anos. Tinham o sono leve, gritavam quando incomodados e sempre reclamavam do aluguel. Mas fazer o que? Com o pai e o irmão nas frentes de milícia a mãe precisava se virar e pagar as contas.
        O quarto mais próximo do seu era o 12. Dormia ali uma senhora de 92 anos. Ela já havia perdido a maior parte da memória e não tinha família, mas uma aposentadoria de datilógrafa garantia a sobrevivência da pobrezinha. Do seu nome, só sabiam que era Joana G. Mas o que procedia a inicial era um mistério.
        No 13 morava Petúnia. Ninguém sabia sua idade, que era veemente escondida por uma vaidade incontrolável. De início, ela se recusara a ficar no quarto por superstição, mas, visto que poucos prédios na cidade aceitariam jóias como pagamento, ela acabou se conformando.
        Bem ao lado deste ficava o único banheiro que os pensionistas dividiam e a garota parou em frente a ele, recostando-se na porta. As mãos estavam suadas e um largo suspiro escapou-lhe pela boca. Nem tinha motivos para estar nervosa... Ninguém veria nada e só dariam por sua falta na manhã seguinte, não era mesmo? O importante era chegar lá. Engoliu esses pensamentos e avançou pelo corredor estreito.
        O próximo quarto era o 16. Nele morava um senhor de 65 anos. Seu nome era Antônio e ele resmungava mais que todos. Recebia visitas semanais da filha, que pagava metade do aluguel. Para completar o orçamento ele tocava piano no Blude todas as noites. Isso lhe fazia dormir até tarde no dia seguinte, mas a sobra de dinheiro permitia que Tom comprasse algumas garrafas de gim no próprio bar onde trabalhava e tal coisa o deixava bem acomodado à vida que levava.
        O 17 era o mais quieto. O inquilino era o único jovem doa quatro e devia ter uns vinte e cinco anos. Lendo o verso de uma de suas correspondências descobriu-se que seu nome era Fernando. Tinha como profissão a literatura, mas era de uns artigos esporádicos para o jornal local que ele realmente vivia.
        Essa última porta estava entreaberta e a garota teve o impulso de olhar pela fresta e satisfazer uma antiga curiosidade. Mas quando se aproximava ouviu um ruído e sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Em dois passos alcançou a escada e desceu em disparada, sem conseguir controlar as próprias pernas. Seu peito era como uma metralhadora.
        Fez a curva na porta da cozinha sem reduzir a velocidade, utilizando a quina da parede como apoio. Parou em frente à geladeira, arfando. Conseguira! Deu a volta no eletrodoméstico e tirou seu fio da tomada. Abriu a porta e ajoelhou-se com o corpo virado para as prateleiras. Fechou os olhos e respirou fundo.
        “É só esperar”, pensou ela. O terror que sentira no andar superior ia aos poucos sendo substituído por uma ansiedade alegre e, depois, por uma tranqüilidade incrível. Ainda não tinha muita certeza se algo de fato aconteceria e, se acontecesse, não sabia o que encontraria. Tinha diversos palpites e começou a refletir sobre cada um deles.
        Nesse momento, porém, ela sentiu um conhecido vento frio soprar no rosto. Abriu os olhos e o que viu, apesar de esperado, não deixou de chocar. No lugar do fundo sujo e descascado da geladeira estava uma paisagem de neve. A garota sentiu o cheiro de peru de natal e ouviu vozes e guizos.
        “A paisagem é móvel”, percebeu, um sorriso brotando nos lábios. Era exatamente como tinha imaginado e ela já sabia o que fazer. Olhos para trás uma última vez e, com os olhos brilhantes de excitação, mergulhou na brancura daquele mundo gelado e desconhecido onde tudo parecia mais feliz e agradável.

Nenhum comentário:

Postar um comentário