sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ofélia

     Alguém puxou a cordinha do ônibus, fazendo apitar o sinal de parada. Ofélia desencostou a cabeça do vidro da janela num sobressalto. O som ecoou por sua cabeça como eco de igreja. Seus olhos, subitamente cegos pela luz, capturaram tontos a paisagem urbana que passava em alta velocidade do lado de fora, fazendo com que sua mente girasse. Ou seria seu corpo que se movia com rapidez pelo espaço?
     "Não devia ter fumado." pensou ela. "Você já está velha demais pra essas coisas", disse consigo, rindo baixinho ao pensar que era exatamente o que a sua mãe lhe diria se a visse naquele momento. Olhou o próprio reflexo pálido no retrovisor interno do motorista: o vermelho brilhante dos olhos era a única coisa que lhe denunciava a entorpecência, contrastando com a seriedade das rugas e dos cabelos brancos.
     O ônibus sacudia e estalava, guinando irresponsavelmente pelas ruas estreitas de um bairro feio e crú. Ela não se preocupava. Fechou os olhos por uns segundos e sentiu o tipo de relaxamento que experimentava na tenra infância, quando o pai dirigia em alta velocidade pela estrada e ela apenas dormitava, no balanço de uma confiança cega e absoluta. Que ele a levasse. Até outro mundo, que fosse. Esticar o pescoço e enervar-se no intuito de prever um acidente não lhe protegeria de nada. Nada protegeria.
     Divertia-se com pensamentos tolos e com os guinchos da estrutura metálica que balançava sobre as rodas de borracha. Ela também era enferrujada e velha. Reconhecia cada dor do seu corpo, amava cada ranger de suas articulações. Reconhecia-os, conhecia-os de longa data. Lhe pertenciam na mesma medida em que eram - de fato - ela. Percebeu a doçura de um autoconhecimento que era quase afeto por suas falhas partes. Quase não. De fato.
     Era como viver por demasiado tempo em um lugar e acabar fazendo parte dele. Por exemplo: numa determinada manhã de novembro, quando subia a rua de cima da sua casa, os cachorros não latiram com a sua passagem. Não percebeu de imediato; passava escutando o trânsito longe, uma TV em algum andar baixo dos prédios - talvez uma portaria -, as folhas e flores dos ipês brilhando de vida. Mas sentia o vácuo de alguma coisa em sua paisagem (já se apropriara por uso capião). Dava-se conta de que não havia latidos.
     Do outro lado da cerca de ferro os cães descansavam apoiando a cabeça nas patas cruzadas. Seus narizes absolutamente entediados - ou plenos - ela não sabia. Uma parte dela ficou quase desapontada, estranhando a falta de alarde pueril que normalmente se fazia com a sua passagem (ou a de qualquer pedestre próximo o suficiente). Seu cheiro talvez já se misturasse ao das amêndoas apodrecendo no chão, às descargas de carros velhos da vizinhança, merda e ao perfume de feijão fazendo caldo nas panelas de pressão. O cheiro do tédio - ou da plenitude - ela não sabia.
     Seria essa a explicação para a insensibilidade do motorista ao passar implacável pelas mesmas passagens que ela admirava e notava com atenção? Seria esse o motivo da falta de tesão em um relacionamento de longas datas? Desejou ver tudo sempre com olhos virgens, e que assim fosse possível emocionar-se com cada uma das quartas-feiras que multiplicavam-se desmedidamente pelos calendários.
     O ônibus sacolejou forte e atirou esses pensamentos pela janela. Eles agora passavam por um viaduto com nome de político.  O entorno estava mudado: em lugar das construções de tijolo nú e ruelas de asfalto com terra batida ela agora via canteiros gramados, sinaleiras novas e prédios comerciais. Passaram por um museu. Ela riu consigo. Quando criança se perguntava por quê os velhos gostavam tanto de museus. Agora, décadas depois, achava graça no pensamento de que talvez fosse reconfortante para eles (ela - sim, agora ela também) admirar coisas mais antigas que si, como se as velhas obras de arte lhes dessem a tranquilidade da casa de uma avó.
     O apito de parada do ônibus soou de novo, ecoando pela sua cabeça em fantástico reverb. Talvez por conta da passagem do museu, começou a pensar na arte como conceito. Pensou que a música era espaço derramado no tempo e que a dança era movimento no espaço. A pintura era uma ideia, apenas, representada no espaço e que as fotografias eram espaço congelado em fatias de tempo. O cinema... O cinema era a ilusão do movimento dessas fatias de momento (ilusoriamente registrados, ilusoriamente, apenas).
     E a literatura...? Sua mente então, calou-se.  Em sua lógica de tempo e espaço, a literatura era nada. Só ilusão. E ainda assim se fazia mais real que tantas outras, às vezes. Muito mais real do que a sensação minúscula de sentir o relevo da tinta sobre o papel. Mas a literatura era só ilusão.
     Irritou-se consigo.
     "Ora, que merda você está pensando, velha? Parece um desses teóricos de gravata borboleta que passam seus dias desperdiçando os dos jovens."
     Mas não... Ao mesmo tempo ela sabia que talvez aquele pensamento fosse o mais valioso que já tivera na última década. Ao mesmo tempo ela sentiu-se roçar de leve com os dedos o tecido brando da Verdade, ou seja lá como se chamasse aquilo. Pensou que para saber o que é arte era necessário, antes de tudo, respirar fundo qualquer ar que fosse e sentir o gosto das partículas nos pulmões. Pensou que para saber o que é arte era necessário antes de tudo permitir-se chorar com propagandas ruins de concessionárias ou sabonetes de baunilha.
     Sua parada era a próxima. Puxou a cordinha e sentiu o irritante som debatendo-se por seu labirinto como um ouriço bêbado. Era prazeroso, apesar de tudo. Desceu do ônibus acreditando com todas as forças que a arte era espaço e movimento, tempo e ilusão.
   

Um comentário:

  1. Vc escreve com a facilidade de quem escova os dentes, com a profundidade e complexidade da loucura, com a riqueza e inspiração do amor e a gente fica aqui apreciando apaixonado ...

    ResponderExcluir