quarta-feira, 11 de maio de 2016

Não falamos muito.

     Venho conversando com a minha sombra à noite. Eu a encaro, ela me encara. Não falamos muito. Minha sombra silenciosa. Ela não tem olhos, mas me olha e eu a olho de volta. Emito, causo ruídos com meu corpo sólido, ela - nada. Minha sombra silenciosa. Nada pelo ar até que se projeta: na parede, no mar, no chão, minha sombra me completa.
     Ela é a ausência do que há em mim e, quando ausente, está dentro. Não sei bem se sente. Emagrece e engorda com mais facilidade que eu e não parece se incomodar, mas pesa sempre o mesmo peso em quilos na balança, que é o peso mesmo do ar. Ainda assim consegue ser mais pesada que todo o meu corpo, quando quer... Na foto, no enquadre, na minha solidão de mulher.
     Minha sombra silenciosa. Dura, macia, dupla... Nunca vazia! Mas sempre silenciosa, para meu alívio, e sempre presente para que eu não me sinta só. às vezes se esconde sob meus pés, quando o sol está assim, no topo. Mas só quando desaparece é que somos uma: se esconde dentro de mim; minha tímida sombra funde com o corpo, descansa do dia.
     Eu sou a gêmea agraciada com a bênção da cor. Ela vive em tons de negro, sem nunca enrubescer de vergonha ou de calor. Não sua. Meu suor tem sombra, mas não molha a minha nua, sempre seca, sombra. Crua. Até iluminada ainda é sombra, como contorno de lua.
     Eu corro - do que seja! - e ela vem junto, a irmã não nascida. E se lhe miro vejo como me segue e como escorre pelas grades, paredes, pisos, carros e vasos de planta. Se apareceu quando nascí - não nascida, aparecida - vai também estar aí na hora em que eu morra. Eu me vou, ela fica, agarrada com o corpo que lhe fez companhia toda uma vida, dure o tanto que for.
     Olhando assim quase parece minha filha: vou deixar para o mundo até que a terra me coma por completo. Minha sombra, minha cria: "herdou minhas formas, mas tem as cores do pai". Ás vezes tem meus lábios, nariz, meu jeito de andar. Mas os olhos... Ah, os olhos não. Minha sombra silenciosa tem sempre olhos de escuridão.

Um comentário:

  1. Nossa....tantas coisas....tuas e minhas palavras, nossa estória alimentando a criação das suas.

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