sexta-feira, 20 de maio de 2016

Lótus

(Minha tinta está acabando, acho...)
Uma cigarra prende fogo. O céu é profundo de azul escuro. "Distante", diria meu pai. As quatro estrelas brilhantes formam cruz e a cauda aponta para o sul. Olho pra trás. Lá, distante, está a seta vermelha da bússula, o N da rosa, os mares revoltosos e gélidos do topo desse mundo - que não tem baixo nem cima, só dentro e fora.
E la fora? Olho para cima: vazio, lindo e gélido como o mar escuro. E dentro... Olho para baixo e sinto o tremor quente de Gaya sob meus pés. O N continua brilhando, mas não me diz mais do que o apontar de uma direção. Mais para a direita está o verdadeiro chamariz do meu coração e para lá apontam meus olhos. Nada mais justo, NE.
Por coincidência - velhinha ardilosa e simpática -, há uma porta, coberta de tela e adornada com espirais de ferro. Essas coisas do destino. É a porta de uma casa que mora em mim. Um portão de metal mágico que parece ter o poder de me transportar para um corredor a céu aberto... Uma ponte que dá para um portão, outro portão de ferro, a milhares de kilômetros, kilos e kilos de distância física, mas que está dentro do meu âmago, na abertura da caixa toráxica.
Entro por ele. Olhos fechados, chave de ponta-cabeça. Subo dois lances de escadaria de pedra que tantas vezes já escalei, semi-consciente e trôpega. Há duas portas guardadas pelo deus iluminado que carrega uma espada de proteção. Dentes arreganhados, olhos bem abertos. Escolho a da esquerda porque sei as palavras mágicas pra fazê-la abrir. Coloco a chave, acaricio a fechadura, puxa-empurra... Ela é manhosa!
Caminho por um corredor estreito até o final. Passo por uma chuva de arco-íris e limpo os pés descalços num tapete bordado. São duas passagens, duas portas mais.
O mensageiro dos ventos soa. A última porta se fecha atrás de mim, selando o mundo, mudo. A luz de fora trespassa a cortina e ilumina tudo com um tom amarelo-felicidade. Calma. O céu é branco, a única nuvem que paira filtra os pesadelos e limpa o ar, quase deixa cheiro de pássaro aberto. Há uma menina-mulher sentada na cama. Cabelo negro, trançado, pesado. Sua cabeça se volta para mim. Me aproximo e seus olhos escuros miram os meus, gentis, buracos negros-luminosos (?) cheios do afeto mais puro.

Eu te amo.

Ela me abraça de um jeito que me faz chorar.

Eu te amo.

Acho que é a primeira vez que me digo isso com todo o coração. Uma flor se abre. Desabrocha.


Eu te amo.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Não falamos muito.

     Venho conversando com a minha sombra à noite. Eu a encaro, ela me encara. Não falamos muito. Minha sombra silenciosa. Ela não tem olhos, mas me olha e eu a olho de volta. Emito, causo ruídos com meu corpo sólido, ela - nada. Minha sombra silenciosa. Nada pelo ar até que se projeta: na parede, no mar, no chão, minha sombra me completa.
     Ela é a ausência do que há em mim e, quando ausente, está dentro. Não sei bem se sente. Emagrece e engorda com mais facilidade que eu e não parece se incomodar, mas pesa sempre o mesmo peso em quilos na balança, que é o peso mesmo do ar. Ainda assim consegue ser mais pesada que todo o meu corpo, quando quer... Na foto, no enquadre, na minha solidão de mulher.
     Minha sombra silenciosa. Dura, macia, dupla... Nunca vazia! Mas sempre silenciosa, para meu alívio, e sempre presente para que eu não me sinta só. às vezes se esconde sob meus pés, quando o sol está assim, no topo. Mas só quando desaparece é que somos uma: se esconde dentro de mim; minha tímida sombra funde com o corpo, descansa do dia.
     Eu sou a gêmea agraciada com a bênção da cor. Ela vive em tons de negro, sem nunca enrubescer de vergonha ou de calor. Não sua. Meu suor tem sombra, mas não molha a minha nua, sempre seca, sombra. Crua. Até iluminada ainda é sombra, como contorno de lua.
     Eu corro - do que seja! - e ela vem junto, a irmã não nascida. E se lhe miro vejo como me segue e como escorre pelas grades, paredes, pisos, carros e vasos de planta. Se apareceu quando nascí - não nascida, aparecida - vai também estar aí na hora em que eu morra. Eu me vou, ela fica, agarrada com o corpo que lhe fez companhia toda uma vida, dure o tanto que for.
     Olhando assim quase parece minha filha: vou deixar para o mundo até que a terra me coma por completo. Minha sombra, minha cria: "herdou minhas formas, mas tem as cores do pai". Ás vezes tem meus lábios, nariz, meu jeito de andar. Mas os olhos... Ah, os olhos não. Minha sombra silenciosa tem sempre olhos de escuridão.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Ponta de Unha - Raio de Sol

     Ouviu de pernas bem juntas os primeiros acordes da música. Os pelos dos braços se eriçando, um frio que descia da nuca e enrijecia os músculos das costas até chegar nos pés, dando-lhe cócegas. As pálpebras pesavam e ela parpadeou em câmera lenta. "Parecia uma atriz ruim fingindo desmaio", pensou.
     Por um momento a veracidade ou não daquele sentimento pareceu brincar na ponta dos seus dedos, como se pudessem desvanecer no ar tal qual a sensação de atriz. Sentiu-a derreter nas unhas e entrar por seu sistema nervoso. Pensou poder sentir a maciez da pele de um pescoço nú, quase dourado, os pequenos pelos eriçando-se ao toque seu.
     De costas, ela não via-imaginava o rosto da outra, mas imaginava-imaginava seus lábios, primeiro temblando de leve, depois apertando-se um contra o outro. O ombro ensaiando levantar e logo relaxando, como um suspiro de quase susto.
     Algo se mexeu dentro dela, pesado e quente; choque térmico com o calafrio. Era como uma rosa vermelha, enquanto o resto era flor da pele. Sentiu como que se fosse real seria tão bom quanto na imaginação e viveu mil desfechos na probabilidade de segundos.
     Gostou, de início; já fazia tempo que imaginar-viver não superava o imaginar - de olhos fechados - em terceira pessoa só meio presente. Talvez quase nada. Depois teve medo... Todos os desfechos outros enrubescendo a suposta face possível, pega na vergonha do flagra da mentira ou da fraqueza.
     Seria como a sensação de atriz ruim, mas de alguma forma pior só por ter sido verdade, mesmo que apenas até então. Ah, mas aqueles pelos de pescoço, eriçados, como pequenos e suaves raios de luz saindo da pele... Mas tão surpreendentemente orgânicos, terrenos, físicos, tocáveis... Permitiu-se brincar com a ideia um pouco mais, mais perto da borda, já sem muita certeza de te-la entre os dedos, senão já além do controle das suas digitais.
     O ritmo da música intensificava. Parecia fazer valer mais cada tempo dos mesmos compassos. O corpo da outra era quente, móvel, pulsava junto com o seu, como se adivinhasse a música que soava por trás daquelas pálpebras que lhe imaginavam.
     Quis tê-la de verdade ali entre os braços, tirar sua roupa, despir o resto daquela pele e sentir o perfume de pessoa que os raios de sol apenas anunciavam. O querer assustou-a. Doía de forma quase viciante. Os acordes agonizavam em consonância com suas sensações, dissonantes.
     O querer-viver surpreendendo-a com seu poder de infiltrar-se de mansinho pelo imaginar-viver. Nunca crera que fosse possível, exceto por aquele par de noites tão distantes e pintadas de sofrimento da mais pura fossa. Desejo escorpiano cavado do solo obscuro de plutão.
     Mas aquilo era diferente, solar, ainda que noturno, como se o calor da verdade refletisse na lua e lhe chegasse em raios mornos. Quis vê-la sorrir ali mesmo, rosto entre suas mãos, e sentir o sangue circulando e manchando a superfície daquela pele lembrada no toque da sua. A lembrança parecia renovar-se a cada segundo, como que também enganada pelos raios de luz, saindo de a pouco do seu refúgio cutâneo.