sexta-feira, 11 de março de 2016

Decifra-me

     Escuto o som do mundo esperando que eu o devore. É o único som que há, captado direto da realidade por meus accuratos ouvidos e montado em cima da linha do tempo, composta por tantas outras faixas, tantas vezes inúteis.
     Escuto o som do mundo implorando para que eu o devore. As pessoas se olham, sem palavras. O olhar já diz o essencial, que pode até ser invisível aos olhos. Os instrumentos, sem dúvidas, soam. Em sua maioria. Algumas canções, a menudo expressas em letras chupadas do pensamento filosófico mais autêntico, da mais pura essência do sentimento.
     Escuta-se o som do mundo devorando-se a si mesmo. Mas não soam as charlas de preenchimento do tecido sonoro de realidade artificial. O diálogo da bola de ping-pong que se esbarra de um canto ao outro sem penetrar. Se escutam o ranger dos dentes e os gemidos, piscares de olhos. Mas não se escuta o som da boca pedindo p queijo na mesa do café. Escuta-se o som da garganta devorando o sanduíche.
     Mas ao fundo está o som do mundo, esperando-me para ser devorado. Grave, fatal, devastador e incessante. É o ventanal, é o mar, são as folhas chocando-se, é o zumbido que vem da terra. São as buzinas e as chaminés e os motores enlouquecidos e enlouquecedores, é o barulho do cheiro da fumaça entrando no nariz.
     É o som do mundo, desesperado para que eu o devore. A fumaça flutua, muda, contra a luz. Sensual. Seu barulho não existe. Sua imagem se funde com o ruído de mar. Grave, tormenta - Uma grande e áspera respiração. Constante, é difícil notar quando inspira ou expira.
     É apenas implacável, devastador. Sentada, ouço o som do mundo esperando que eu o devore.

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