quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Terraço 3

       Dentre os quase infinitos hotéis de quinta com nomes bizarros, o Terraço tinha motivos para ser assim chamado. No último andar jazia, semi-destruída, uma escada de ferro grudada na parede. Por ela, subia-se ao teto, passando por uma espécie de alçapão que nunca estava realmente fechado. Era de uma laje batida sem nenhum requinte que o Terraço tirava seu nome e boa parte de sua clientela.
       Embora o lugar em si tivesse o mesmo toque azulejado de espelunca que cobria todo o edifício, não havia em toda a cidade um prédio de luxo com vista mais sensacional. A vizinhança de construções pobres e baixas garantia um 360º de horizontes irregulares. Aos olhos de Nícola, o brilho suave do sol que surgia escorria pelo asfalto das ruas até a praia, como rios desembocando no mar.
       O ar fresco da manhã nascente vinha carregado de um salitre que lhe descia pelo peito, fazendo o caminho inverso ao da bola de emoções confusas que guardava havia tanto tempo. Era salgado também o gosto que sentia na boca, vindo dos olhos em caminhos que ainda ardiam em seu rosto.
       Do seu panoptikum ele também enxergava a porta de entrada do hotel e as pessoas que entravam e saíam. Pôde então ver, num corte transversal, o vórtice de toda a sua tempestade pessoal. Uma cabeça e dois ombros morenos que se moviam apressados pela rua. Não era comum que a luz do dia iluminasse o seu disfarce, mas às vezes a manhãzinha chegava antes que seus assuntos estivessem terminados.
       Nicola esperou até que Rafael fosse apenas um ponto entre os edifícios de cidade, desparecendo no labirinto de ruelas em um passo bamboleante. Quando seus olhos já não mais o podiam avistar, pousaram no mar à sua frente e no brilho que os tímidos raios solares causavam na espuma da maré vazante. Desejou que as ondas levassem consigo os seus sentimentos para o fundo das águas, para o esquecimento.
       O corpo pesado; nada se movia com exceção dos pulmões, do coração e de um ocasional piscar de olhos. Esperava algo, qualquer coisa. Talvez a providência divina, que o ascendesse ao céu, livrando-lhe da carne suja; talvez as próprias pernas desiludidas, que saltassem e o livrassem do espírito perturbado. Um segundo, dois. Três minutos, quatro. Cinco anos? Ele não saberia dizer: não escutava bem o próprio pulso e perdera a conta da respiração. Esperava um milagre, um champignon gigante de uma bomba que lhe explodisse a cabeça com um ânimo avassalador. O sangue jorraria e evaporaria com o calor, enquanto seus pensamentos seriam espalhados pelo chão.
       Nicola imaginou ver luzes ao longe - um disco voador - mas só por instantes. Piscou e livrou-se dos reflexos na água do mar, que se prendiam em seu cílios como purpurina. O peso de um cruel livre arbítrio lhe afundava os ombros enquanto a solidão finalmente era apercebida pelo timo do rapaz. Ele nunca testara o universo, nunca esperara nada do destino e então, pela primeira vez gritando no túnel, não recebera maior resposta que o eco da própria voz.
       Era viado. Era viado e sozinho. Era viado, sozinho e não tinha salvação nem coragem para pular. Essas certezas se enfiavam nele no compasso em que as compreendia. Faziam o caminho inverso do sistema digestório, entrando pelo cú e saindo pela boca em gritos desesperados. Era tão feliz.



... feliz



... feliz



... feliz



... hahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahhaahhahaha!



       O sol já estava a pino quando viram passar o cadáver andante de um homem em direção à praia. Ninguém tentou se encostar nele ou lhe dirigir palavras, ninguém demorava os olhos sobre ele. A sua pele mais parecia a persiana aberta de uma janela. Porém, ao invés de luz, era sangue pastoso e escuro que trespassava as fitas de derme.
       Um filete único descia pela sarjeta da rua como um barbante rubro. Quem conseguisse segurar sua ponta e seguir seu caminho pelo labirinto urbano chegaria na calçada da orla, meio desabada desde a última enchente. Daquele ponto em diante não havia mais rastros ou qualquer evidência de Nícola. O mar, ao engolir seu corpo, limpara todas as pegadas e vestígios da praia, como quem lambe os dedos após uma boa refeição, sem pressa.
       Mas o tempo não para. O sol logo logo descia em marcha pelo céu e as ondas, satisfeitas, dançavam ao som de ossos sacolejantes que logo seriam areia, como tantos outros antes deles.

Nenhum comentário:

Postar um comentário