segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Les Mangeurs De Nuages

     Os dias me vão descendo pela garganta como granola. Os duros grãozinhos são os desejos reprimidos que empurro para dentro. Mas não é possível digerí-los por completo. Eles tampouco se deixam voar para fora da minha boca como borboletas saídas de um casulo; apenas escorrem pelo ralo, meio disformes da trituragem incompleta.
     Pé ante pé, meus passos ecoam pela sala vazia como tambores arautos dos pesadelos. E mesmo que eu pise leve como um gato ainda posso escutá-los retumbando no azulejo frio. Volto a sentir medo do escuro, do gás do fogão, da luz vermelha do corredor e dos meus próprios passos, escondidos nos calcanhares.
     O "Julho" no calendário é como um atestado de total incompetência diante da enorme quantidade de "x"s e do pouco que fiz de útil e concreto. Mas esse  certificado oficial de displicência parecerá belo aos meus olhos quando a próxima folha for virada, trazendo a legalidade para os meus ombros e me condenando à prisão perpétua, à fronteira final da realidade e às eternas rugas de preocupação.
     Sinto-me travada, como uma máquina de escrever enguiçada. As letrinhas vão se entalando em mim e entupindo-me como a gordura às veias cardíacas de alguns. O sangue já não passa e eu quase já não tenho pulso. As pecinhas vão se amontoando como uma fila de hospital e a cada dia que passa tenho mais letras para curar e menos ideia de como fazê-lo.
     Penso nas curvas que delineiam certas lembranças e nos olhos que ficaram gravados nos meus, engessados como um braço quebrado. Penso em tudo o que tenho e que me é mais precioso que qualquer diamante de Serra Leoa e mais raro que chuva de granizo numa praia de verão. Penso nas tesouras de costura, que cortam gesso, roupas e todo, todo tipo de tecido, mas não costuram nem fiapos, retalhos ou mesmo frangalhos.
     Queria que as coisas caíssem da realidade diretamente nas caixinhas que criei dentro do meu cérebro. Queria organizar minha cabeça como se fosse um daqueles brinquedos de bebê, com cores e formas que encaixam e te deixam com aquela sensacão de depois de estalar um dedo. Emocões fraternas nas caixinhas verdes, amores das cor-de-rosa, paixões nas vermelhas, melancolia nas azuis e solidão nas marrons. Mas e a minhas caixa preta? Quem vai abrir?
     Se sonho com Pandora, já traio a mim mesma no ponto em que as caixinhas rasgam e espalham tudo numa grande e colorida piscina de bolinhas. E se Pandora tem os olhos âmbar, já sei que os lobos estão por perto, esperando o meu fechar de olhos. E assim, não tenho medo do escuro, mas do que posso acabar vendo em maio à escuridão.
     Engulo em seco e a granola estala como lenha na fogueira. Vai abrindo seu caminho aos tapas pela minha faringe, enquanto a fumaça envereda pela traquéia e lhe acena boa viagem. Dá adeus aos bons costumes, à limpeza de alma e à tranquilidade pulmonar. Dá adeus aos dias em que as decisões eram reversíveis.
     Incrível como já não é possível nem mesmo penetrar de fato num universo que antes me era almejado, talvez divino. Tais coisas e pessoas hoje se encontram ao alcance da minha mão, ao toque dos meus dedos. No entanto, quando sacudo o braço elas se desvanecem em fumaça, como que irreais. Tornam-se transparentes, escassas, superficiais e, por fim, invisíveis aos meus olhos. Suas vozes vão ficando desimportantes aos meus ouvidos e emudecem por completo diante de uma música do Guided By Voices.
     É nesse ponto que os mares tomam meus arredores. "I am a scientist, I seek to understand me..." - A ilha se forma, a neblina desce, os rostos e línguas empalidecem - "... I am an incurable and nothing alse behaves like me".

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