A iminência da morte é o que move o ser humano. Como um todo. A viver, a seguir, a fazer arte.
A morte é o juízo final, mas não no sentido punitivo da palavra, senão que como uma redenção para todos os seres humanos (ou não). Nós, seres que jamais passarão incólumes pela existência, temos como premissa e promessa uma noite sem despertadores no dia seguinte.
E é por isso que acordamos todas as manhãs.
Ou tardes, ou noites. É o famoso livre arbítrio. Benção considerada por muitos como maldição... E horas é. Horas que são determinantes para dissociar liberdade de felicidade. Horas que se transformam em dias, que se transformam em anos, que se arrastam ou escorrem, a depender da hora, do clima. E depende do que você quer, do que você crê, se você ora. E, ora, quem sou eu pra falar do final, mas por hora:
"Fate
Up against your will
Through the thick and thin
He will wait until
You give yourself to him."
A Caixa de Músicas
Como as notas de uma melodia que no início não fazem sentido, mas depois começam a soar familiares.
segunda-feira, 31 de julho de 2017
Dura Recostura - 04/04/2017
Não diga que o que eu disse
Não fez sentido, não!
Às vezes eu me deixo
Levar pela emoção
Não diga que o que eu fiz
Me fez perder a razão
Às vezes a flecha
Vem sem direção
E me rasga sem
piedade
E essa dura re costura
Tem requinte de maldade
E o que eu disse foi tudo
verdade
Mesmo que seja loucura
Pra tua realidade
Não diga que o que eu fiz
Foi motivo de vergonha
Talvez, no meu limite,
Seja a forma que eu me imponha
Não diga que o que eu disse
Foi por causa da maconha
O certo pra você é só
"brigada" e "disponha"
E eu não quero tua
piedade
E essa tal condescendência
Tem requinte de maldade
Seu diploma de
sanidade
É carimbado e assinado
Por Doutor Marquês de Sade
Não fez sentido, não!
Às vezes eu me deixo
Levar pela emoção
Não diga que o que eu fiz
Me fez perder a razão
Às vezes a flecha
Vem sem direção
E me rasga sem
piedade
E essa dura re costura
Tem requinte de maldade
E o que eu disse foi tudo
verdade
Mesmo que seja loucura
Pra tua realidade
Não diga que o que eu fiz
Foi motivo de vergonha
Talvez, no meu limite,
Seja a forma que eu me imponha
Não diga que o que eu disse
Foi por causa da maconha
O certo pra você é só
"brigada" e "disponha"
E eu não quero tua
piedade
E essa tal condescendência
Tem requinte de maldade
Seu diploma de
sanidade
É carimbado e assinado
Por Doutor Marquês de Sade
Caderno Novo - 05/03/2017
Pensei que esse caderno começaria numa viagem, mas começou numa privada, numa ressaca de Whisky e amendoim. Talvez tivesse de ser assim... Seria romântico demais dizer que tudo começou num trem a Berlim ou numa barraca cheirando a capim.
Às vezes até me acontecem essas coisas, mas nunca é tão glamouroso. Há. Talvez isso tire o meu da reta quando se trata da tênue linha que separa o indie do under, o nutela do raiz.
A cidade me oprime, as cadeiras me deprimem e já não aguento mais esse semestre.
Mas venho melhorando.
Nada como dar alguns foda-se e escolher focar na boa pra ficar de boa. É estimulante. Foco em ir pra frente, criar, produzir, realizar... É a influência de Saturno, cipah.
#oremos
E que o próximo semestre seja mais bem alocado.
#oremos
E que eu de fato leve a Berlim esse bendito caderno.
#oremos
E que eu possa a cada dia me amar mais e ser também pessoas melhores
#seremos
E que eu possa preencher essas páginas com palavras dignas de quebrar o silêncio (ou ao menos de riscar o papel).
Amém.
Às vezes até me acontecem essas coisas, mas nunca é tão glamouroso. Há. Talvez isso tire o meu da reta quando se trata da tênue linha que separa o indie do under, o nutela do raiz.
A cidade me oprime, as cadeiras me deprimem e já não aguento mais esse semestre.
Mas venho melhorando.
Nada como dar alguns foda-se e escolher focar na boa pra ficar de boa. É estimulante. Foco em ir pra frente, criar, produzir, realizar... É a influência de Saturno, cipah.
#oremos
E que o próximo semestre seja mais bem alocado.
#oremos
E que eu de fato leve a Berlim esse bendito caderno.
#oremos
E que eu possa a cada dia me amar mais e ser também pessoas melhores
#seremos
E que eu possa preencher essas páginas com palavras dignas de quebrar o silêncio (ou ao menos de riscar o papel).
Amém.
Tira de Letra - 10/04/2017
Ser BR não é mole, ah!
Ser BR não é mole, bê.
Ser BR não é mole, cê não sabe...
Tem que ter, tem que ler, tem que ver
Tem que ter jogo de cintura
E saber ler a conjuntura
Não fazer confusão:
Tem amigo que é brother
E amigo que é irmão
Tem que ver o que é cultura
Entender beleza pura
(k pra nós) Só dinheiro é que não...
Mas geralmente a gente
Ginga com a situação
Se tá na chuva é pra se molhar
E às vezes comer um bocado de agá
Mas no dia em que não gerar
Tira de letra, sai na egípcia
E joga um cipah
Pa pa ra pa pa pa
Ser BR não é mole, bê.
Ser BR não é mole, cê não sabe...
Tem que ter, tem que ler, tem que ver
Tem que ter jogo de cintura
E saber ler a conjuntura
Não fazer confusão:
Tem amigo que é brother
E amigo que é irmão
Tem que ver o que é cultura
Entender beleza pura
(k pra nós) Só dinheiro é que não...
Mas geralmente a gente
Ginga com a situação
Se tá na chuva é pra se molhar
E às vezes comer um bocado de agá
Mas no dia em que não gerar
Tira de letra, sai na egípcia
E joga um cipah
Pa pa ra pa pa pa
Como cê pensa - 12/04/2017
Sentia saudades de escrever chapada, de entrar num estado de intimidade consigo que lhe permitia a honestidade de certas ideias, palavras, sentimentos e carinhos mentais mais livres.
Como meu monólogo interno, eu sou assim. Quase que o tempo todo uma "voz" escrevendo umas história, com ideias, palavras, sensações, coceiras mentais que se debulham em sementes diversas. Uma história, várias histórias. Minha história. Minhas memórias, que são um registro limitado (e inconscientemente selecionado, como já se sabe).
Mas o cruel e (?) justo (?) registro do papel no momento de maior intimidade (quase pudica) com essa voz proporciona uma honestidade quase crítica, mas extremamente vulnerável também.
Entregar-se ao papel. Permitir que a alma transborde do corpo e mergulhe nele, deixando o rastro do seu sangue marinho como tinta que há de secar. É uma gentileza preciosa que me permito, de quando em vez... E quando a preguiça não consegue me dissuadir de ir pegar a caneta.
Vem intercalada por pausas para respirações profundas... Porque, sinceramente, respirar é bom pra caralho, não acha? Faço o tempo todo.
HÁ.
A honestidade do monólogo até me permite uma piada de tio do pavê.
É análogo a uma confissão religiosa, mas o padre é de madeira fatiada e não te absolve de porra nenhuma - só absorve. Há também o direito a longas paradas para olhar pregos nas paredes ou até encarar longamente borboletas. Talvez até depois de algum tempo que elas já tiverem ganhado os ares e fugido do campo de visão.
Existe uma certa fúria nisso, o que me pesa a mão. Deixa sequelas, incômodos e tensões que percorrem os nervos até se alojarem nos músculos do pescoço e do ombro. E é por isso que me alongo o tempo todo, como uma louca...
... Porque eu sou mesmo, mas não como se pensa. Não como cê pensa.
Como meu monólogo interno, eu sou assim. Quase que o tempo todo uma "voz" escrevendo umas história, com ideias, palavras, sensações, coceiras mentais que se debulham em sementes diversas. Uma história, várias histórias. Minha história. Minhas memórias, que são um registro limitado (e inconscientemente selecionado, como já se sabe).
Mas o cruel e (?) justo (?) registro do papel no momento de maior intimidade (quase pudica) com essa voz proporciona uma honestidade quase crítica, mas extremamente vulnerável também.
Entregar-se ao papel. Permitir que a alma transborde do corpo e mergulhe nele, deixando o rastro do seu sangue marinho como tinta que há de secar. É uma gentileza preciosa que me permito, de quando em vez... E quando a preguiça não consegue me dissuadir de ir pegar a caneta.
Vem intercalada por pausas para respirações profundas... Porque, sinceramente, respirar é bom pra caralho, não acha? Faço o tempo todo.
HÁ.
A honestidade do monólogo até me permite uma piada de tio do pavê.
É análogo a uma confissão religiosa, mas o padre é de madeira fatiada e não te absolve de porra nenhuma - só absorve. Há também o direito a longas paradas para olhar pregos nas paredes ou até encarar longamente borboletas. Talvez até depois de algum tempo que elas já tiverem ganhado os ares e fugido do campo de visão.
Existe uma certa fúria nisso, o que me pesa a mão. Deixa sequelas, incômodos e tensões que percorrem os nervos até se alojarem nos músculos do pescoço e do ombro. E é por isso que me alongo o tempo todo, como uma louca...
... Porque eu sou mesmo, mas não como se pensa. Não como cê pensa.
domingo, 18 de junho de 2017
IMPEACHMENT
A6
Botaram um monumento na praça
D7 E7
Disseram que era pra homenagear
A6 Gm
Ninguém sabe quem, ninguém sabe o quê
Gm6 C7/9 F7
Mas se fizer alarde os porco vão descer
Fm6 Bb7/9
Ninguém sabe o quê, ninguém sabe quem
Mas não lhe desacate, só lhe trate bem
e vai. de. mansinho
no passinho
no jeitinho brasileiro de levar
e vai. de a.miguinho
com jeitinho
sim senhor, pra carrocinha não levar
A6
Botaram um parlamento reaça
D7 E7
Disseram que era pra organizar
A6 Gm
Ninguém sabe quem, ninguém sabe o quê
Gm6 C7/9 F7
No planalto ou na bancada do BBB
Fm6 Bb7/9
Ninguém sabe o quê, ninguém sabe quem
E se quem souber morre, não fala ninguém
e vai. de. mansinho
no passinho
no jeitinho brasileiro de levar
e vai. de a.miguinho
rapidinho
no jatinho dando um raio até chegar
A6
Fizeram um movimento de massa
D7 E7
Disseram que era pra se indignar
A6 Gm
Ninguém sabe bem exato o por quê
Gm6 C7/9 F7
E nesse meio tempo deram um rolê
Fm6 Bb7/9
Quem paga pra ver não sabe o que vem
Em cadeira derrubada não senta ninguém
Botaram um monumento na praça
D7 E7
Disseram que era pra homenagear
A6 Gm
Ninguém sabe quem, ninguém sabe o quê
Gm6 C7/9 F7
Mas se fizer alarde os porco vão descer
Fm6 Bb7/9
Ninguém sabe o quê, ninguém sabe quem
Mas não lhe desacate, só lhe trate bem
e vai. de. mansinho
no passinho
no jeitinho brasileiro de levar
e vai. de a.miguinho
com jeitinho
sim senhor, pra carrocinha não levar
A6
Botaram um parlamento reaça
D7 E7
Disseram que era pra organizar
A6 Gm
Ninguém sabe quem, ninguém sabe o quê
Gm6 C7/9 F7
No planalto ou na bancada do BBB
Fm6 Bb7/9
Ninguém sabe o quê, ninguém sabe quem
E se quem souber morre, não fala ninguém
e vai. de. mansinho
no passinho
no jeitinho brasileiro de levar
e vai. de a.miguinho
rapidinho
no jatinho dando um raio até chegar
A6
Fizeram um movimento de massa
D7 E7
Disseram que era pra se indignar
A6 Gm
Ninguém sabe bem exato o por quê
Gm6 C7/9 F7
E nesse meio tempo deram um rolê
Fm6 Bb7/9
Quem paga pra ver não sabe o que vem
Em cadeira derrubada não senta ninguém
quarta-feira, 8 de março de 2017
Odile IV
Sabia que não deveria estar lá. E tinha sabido antes de mesmo pisar no rodapé da casa. Apesar de já ter recebido todos os avisos possíveis e belas confirmações do poder da sua intuição... Ainda assim ignorava.
Olhando em volta e recuperando os buracos onde tinha a chance de se meter - e o fizera - e imaginava a metragem a ser escalada para sair de todos eles. Mas se metera por mérito próprio e grandes vacilos vêm com grandes responsabilidades.
Suportava, apenas. Será que um belo dia chegava o momento da vida onde você se via falando sobre preços de lajotas e pisos de PVC? Comentando orçamentos de azuleijos, rejuntes e art decô? Na noite anterior se pegara imóvel, encarando a quina do teto do hotel como se no vértice daqueles 3 planos estivesse algum tipo de resposta.
Pra qual pergunta? Havia muitas não respondidas. Madeira ou fake? Quem sou eu? Tijolo ou pastilha? Eram os deuses astronautas? Quem dirige? Quem sou eu? Onde vamos almoçar? Muitas não eram respondidas, mas elas sempre brotariam a todo momento. Naquele mesmo instante se perguntava se o gosto da esposa do colega de trabalho de Leonardo para decoração seria tão intragável quanto seu gosto por estampas de blusa.
Repreendeu-se por esse pensamento maldoso. "Você está se tornando o tipo de pessoa que antes te dava tédio". Sabia do risco quando resolvera ir morar com ele naquele apartamento de gosto meio asséptico-cult-pop tirado a minimalista. Sabia que talvez seu sorriso ficasse tão esticado quando o couro do sofá da sala. Mas achara que seria um processo doloroso, árduo - suportado, apenas.
Muito ao contrário, havia sido como descer uma ladeira de declive suave, os pés arrastando-se como se usasse um preguiçoso chinelo para ir comprar pão num sábado de manhã. Mas não doera. Nem sequer fora difícil em qualquer momento; era o curso natural da inércia espaço-temporal. O mesmo fluxo que agora lhe movia as mãos, enxugava o molho no guardanapo, levava a taça aos lábios. Piscar, inspirar. Manter respiração. Tentar escutar o que ele está dizendo. Virar para olhar na direção dela quando traça um comentário. O sorriso solto, o olhar nublado.
Desde a noite anterior parecia que o grande catálogo de ferragens de banheiro que levava na bolsa havia enferrujado pelo tipo de má fé que tratora até aço inox. Não lhe brilhavam mais os olhos. Seu reflexo metálico já não lhe mostrava toalhas felpudas e sabonetes de verbena. Teria sido uma vida confortável. Teria sido um declive suave e indolor se aquela quina de teto não parecesse um impasse dentro de sua própria cabeça.
Olhara para o lado e se perguntara como poderia ele dormir tão tranquilo, sem dar-se conta de que percorriam itinerários que sempre passavam por aquele vértice, como se marcasse um limite máximo de onde aquela ladeira chegava. O resto era adiar o fim, adiar o ponto final. Alternar entre os planos, deslizar pelas arestas das 3 dimensões tangíveis enquanto brincava de desperdiçar a quarta. E ele ressonara tão tranquilo, sonhando com pequenos olhinhos e dobrinhas que esperava ter germinado na barriga que alisava, distraído e com alguma doçura.
Estremecera com esse pesamento. Olhara fundo no vértice e sentira que de alguma forma aquele ponto solitário lhe abrira um furo algum lugar dentro. Nunca esqueceria esse pensamento. Agora, algumas semanas depois, porém, se concentrava mais em lembrar da numeração da textura de cortina que usaria na sala. Era creme. Creme alguma coisa L35? Não, calma, isso era o Sofá.
A mulher riu. Sônia. O nome dela era Sônia.
- Esquece, você me manda depois. - disse ela, abanado o ar como se houvesse fumaça - Eu sigo uma pasta no pinterest, só com paletas de cores e texturas de tecidos e tinturas. Tenho até uma pasta especial de papeis de parede. Edições comemorativas de natal, estampas infantis pro quarto das crianças... - ela parou um segundo, aqui, lançando um olhar para seu marido e depois para Leonardo e depois para Odile - E para quando planejam o pequeno? - disse, comovida, quase guinchando em pequena euforia.
Leonardo sorriu, num desconforto quase fingido, quase cheio de contentamento. Olhou para ela e começou a responder, balbuciando.
- Sim... Sim... Estamos conversando sobre, desde que decidimos morar juntos. No projeto do apartamento com certeza está previsto um pequeno quarto que seria para o bebê, mas que pode servir a ela de escritório também. Estamos ainda esperando... - Gaguejou um pouco sem saber como tocar no tema da fecundação.
Odile empalideceu. Não sabia se queria ter contado nada disso àquele casal. O marido de Sônia, pareceu perceber o pudor de Leonardo - sem ter nem pálida percepção do desconforto de Odile - e completou, sugerindo:
- Esperando a cegonha, né? - soltou uma risada grave e meio safardana que deu a Odile vontade de cuspir a carne que colocara na boca. - Ah, nada como o período fértil do mês, hein? Tem que aproveitar para usar todas aquelas roupinhas de renda agora porque depois, meu querido... Ha! Não tem mais oba-oba, nem cinta-liga, nem noites de sono. E deu uma piscadinha. - Tô mentindo, Nona? Hahahahahaha. - Riu, dando uma cutucada na esposa, como quem invoca cumplicidade.
Sônia e Leonardo riram. Sem graça, Odile apenas sentiu enregelar o estômago, sem dizer palavra. Torcida, deu um gole do vinho. Depois de coçar a garganta, a mulher retomou seu monólogo:
- Bom... Tem uns papéis de parede divinos pra bebê. Coisa de primeira, parece quarto de príncipe. Digo, ou princesa... Mas te digo que tomara que seja um menino - disse, como que confidenciando um segredo politicamente incorreto - porque o azul é muito mais lindo que o rosa. Não que eu não goste do rosa. Mas o tom do azul tem algo... algo de realeza que simplesmente vale o preço do metro quadrado.
Odile não sabia se deveria dizer alguma coisa. Girava o garfo já enrolado de espaguete na colher, como se aquele barulho lhe arranhasse a garganta, que coçava com as coisas que ouvia. O orçamento obsceno dos papéis de parede lhe desciam com mais facilidade que o macarrão frio. Encostou os talheres na esquerda do prato, focou na quina do piso na parede da sua frente, por baixo do braço da Sônia, que começara a gesticular. Desfocou o pesamento como quem desfoca uma lente. Dormentou os próprios sentidos. Apenas acenava e meiamente sorria de lábios fechados.
Olhando em volta e recuperando os buracos onde tinha a chance de se meter - e o fizera - e imaginava a metragem a ser escalada para sair de todos eles. Mas se metera por mérito próprio e grandes vacilos vêm com grandes responsabilidades.
Suportava, apenas. Será que um belo dia chegava o momento da vida onde você se via falando sobre preços de lajotas e pisos de PVC? Comentando orçamentos de azuleijos, rejuntes e art decô? Na noite anterior se pegara imóvel, encarando a quina do teto do hotel como se no vértice daqueles 3 planos estivesse algum tipo de resposta.
Pra qual pergunta? Havia muitas não respondidas. Madeira ou fake? Quem sou eu? Tijolo ou pastilha? Eram os deuses astronautas? Quem dirige? Quem sou eu? Onde vamos almoçar? Muitas não eram respondidas, mas elas sempre brotariam a todo momento. Naquele mesmo instante se perguntava se o gosto da esposa do colega de trabalho de Leonardo para decoração seria tão intragável quanto seu gosto por estampas de blusa.
Repreendeu-se por esse pensamento maldoso. "Você está se tornando o tipo de pessoa que antes te dava tédio". Sabia do risco quando resolvera ir morar com ele naquele apartamento de gosto meio asséptico-cult-pop tirado a minimalista. Sabia que talvez seu sorriso ficasse tão esticado quando o couro do sofá da sala. Mas achara que seria um processo doloroso, árduo - suportado, apenas.
Muito ao contrário, havia sido como descer uma ladeira de declive suave, os pés arrastando-se como se usasse um preguiçoso chinelo para ir comprar pão num sábado de manhã. Mas não doera. Nem sequer fora difícil em qualquer momento; era o curso natural da inércia espaço-temporal. O mesmo fluxo que agora lhe movia as mãos, enxugava o molho no guardanapo, levava a taça aos lábios. Piscar, inspirar. Manter respiração. Tentar escutar o que ele está dizendo. Virar para olhar na direção dela quando traça um comentário. O sorriso solto, o olhar nublado.
Desde a noite anterior parecia que o grande catálogo de ferragens de banheiro que levava na bolsa havia enferrujado pelo tipo de má fé que tratora até aço inox. Não lhe brilhavam mais os olhos. Seu reflexo metálico já não lhe mostrava toalhas felpudas e sabonetes de verbena. Teria sido uma vida confortável. Teria sido um declive suave e indolor se aquela quina de teto não parecesse um impasse dentro de sua própria cabeça.
Olhara para o lado e se perguntara como poderia ele dormir tão tranquilo, sem dar-se conta de que percorriam itinerários que sempre passavam por aquele vértice, como se marcasse um limite máximo de onde aquela ladeira chegava. O resto era adiar o fim, adiar o ponto final. Alternar entre os planos, deslizar pelas arestas das 3 dimensões tangíveis enquanto brincava de desperdiçar a quarta. E ele ressonara tão tranquilo, sonhando com pequenos olhinhos e dobrinhas que esperava ter germinado na barriga que alisava, distraído e com alguma doçura.
Estremecera com esse pesamento. Olhara fundo no vértice e sentira que de alguma forma aquele ponto solitário lhe abrira um furo algum lugar dentro. Nunca esqueceria esse pensamento. Agora, algumas semanas depois, porém, se concentrava mais em lembrar da numeração da textura de cortina que usaria na sala. Era creme. Creme alguma coisa L35? Não, calma, isso era o Sofá.
A mulher riu. Sônia. O nome dela era Sônia.
- Esquece, você me manda depois. - disse ela, abanado o ar como se houvesse fumaça - Eu sigo uma pasta no pinterest, só com paletas de cores e texturas de tecidos e tinturas. Tenho até uma pasta especial de papeis de parede. Edições comemorativas de natal, estampas infantis pro quarto das crianças... - ela parou um segundo, aqui, lançando um olhar para seu marido e depois para Leonardo e depois para Odile - E para quando planejam o pequeno? - disse, comovida, quase guinchando em pequena euforia.
Leonardo sorriu, num desconforto quase fingido, quase cheio de contentamento. Olhou para ela e começou a responder, balbuciando.
- Sim... Sim... Estamos conversando sobre, desde que decidimos morar juntos. No projeto do apartamento com certeza está previsto um pequeno quarto que seria para o bebê, mas que pode servir a ela de escritório também. Estamos ainda esperando... - Gaguejou um pouco sem saber como tocar no tema da fecundação.
Odile empalideceu. Não sabia se queria ter contado nada disso àquele casal. O marido de Sônia, pareceu perceber o pudor de Leonardo - sem ter nem pálida percepção do desconforto de Odile - e completou, sugerindo:
- Esperando a cegonha, né? - soltou uma risada grave e meio safardana que deu a Odile vontade de cuspir a carne que colocara na boca. - Ah, nada como o período fértil do mês, hein? Tem que aproveitar para usar todas aquelas roupinhas de renda agora porque depois, meu querido... Ha! Não tem mais oba-oba, nem cinta-liga, nem noites de sono. E deu uma piscadinha. - Tô mentindo, Nona? Hahahahahaha. - Riu, dando uma cutucada na esposa, como quem invoca cumplicidade.
Sônia e Leonardo riram. Sem graça, Odile apenas sentiu enregelar o estômago, sem dizer palavra. Torcida, deu um gole do vinho. Depois de coçar a garganta, a mulher retomou seu monólogo:
- Bom... Tem uns papéis de parede divinos pra bebê. Coisa de primeira, parece quarto de príncipe. Digo, ou princesa... Mas te digo que tomara que seja um menino - disse, como que confidenciando um segredo politicamente incorreto - porque o azul é muito mais lindo que o rosa. Não que eu não goste do rosa. Mas o tom do azul tem algo... algo de realeza que simplesmente vale o preço do metro quadrado.
Odile não sabia se deveria dizer alguma coisa. Girava o garfo já enrolado de espaguete na colher, como se aquele barulho lhe arranhasse a garganta, que coçava com as coisas que ouvia. O orçamento obsceno dos papéis de parede lhe desciam com mais facilidade que o macarrão frio. Encostou os talheres na esquerda do prato, focou na quina do piso na parede da sua frente, por baixo do braço da Sônia, que começara a gesticular. Desfocou o pesamento como quem desfoca uma lente. Dormentou os próprios sentidos. Apenas acenava e meiamente sorria de lábios fechados.
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