terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Delírio de Febre II - 14.02.2017

A arte existe para que me olhes nos olhos, trás uma cortina de lágrimas, e me digas que me amas e que sou a coisa mais importante do (teu) mundo.
Mesmo que não seja verdade.
Mas cada lágrima é mais verdadeira que A Verdade.
Mesmo que não seja.
E isso é arte.

A arte existe para que os pequenos pássaros de papo amarelo que assentaram ninho nos fios de eletricidade me sejam mais audíveis que os motores exalando fumaça.
Ou mais belos.
Mesmo que não seja verdade.
Mesmo que a saturação já não me permita ver os sons.
Mesmo que já não haja pássaros nessa cidade.
Só saudade.

A arte existe para que cate os retalhos de um coração rasgado e cole-os todos num papel rascunho por ali jogado.
E que os pedaços grudados em forma de árvore rasguem em seu rosto sorrisos maiores que as fendas do antigo coração.
Ou talvez mais serenos.
Ao menos antes que seja tarde.
E isso é arte.

E se na pior adversidade teu deus te dá forças, isso também é arte.
Por isso, então, deus lhe pague.
E mesmo que não...

"A arte existe para que a vida não nos esmague."




segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

O Riso dos Outros

Eu não vejo graça
Quando vem com esse papo
Que é parça, muito meu amigo
Vem logo falando que é desconstruído
E assina embaixo do senso comum

E se eu não vejo graça
Quando cospe um ditado
De praça, muitíssimo antigo
Reclama que agora tudo é proibido
Que se for assim não vai se salvar um

Mas se eu quero fazer a cabeça
Teu papo é reto
Faz fita de cidadão de bem
Discurso politicamente correto
De que ninguém é melhor do que ninguém

Aí eu dou risada
Mas eu não vejo graça
Aí eu dou risada
Mas eu não vejo graça

Se eu sou exagerada
Você é reaça

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ofélia

     Alguém puxou a cordinha do ônibus, fazendo apitar o sinal de parada. Ofélia desencostou a cabeça do vidro da janela num sobressalto. O som ecoou por sua cabeça como eco de igreja. Seus olhos, subitamente cegos pela luz, capturaram tontos a paisagem urbana que passava em alta velocidade do lado de fora, fazendo com que sua mente girasse. Ou seria seu corpo que se movia com rapidez pelo espaço?
     "Não devia ter fumado." pensou ela. "Você já está velha demais pra essas coisas", disse consigo, rindo baixinho ao pensar que era exatamente o que a sua mãe lhe diria se a visse naquele momento. Olhou o próprio reflexo pálido no retrovisor interno do motorista: o vermelho brilhante dos olhos era a única coisa que lhe denunciava a entorpecência, contrastando com a seriedade das rugas e dos cabelos brancos.
     O ônibus sacudia e estalava, guinando irresponsavelmente pelas ruas estreitas de um bairro feio e crú. Ela não se preocupava. Fechou os olhos por uns segundos e sentiu o tipo de relaxamento que experimentava na tenra infância, quando o pai dirigia em alta velocidade pela estrada e ela apenas dormitava, no balanço de uma confiança cega e absoluta. Que ele a levasse. Até outro mundo, que fosse. Esticar o pescoço e enervar-se no intuito de prever um acidente não lhe protegeria de nada. Nada protegeria.
     Divertia-se com pensamentos tolos e com os guinchos da estrutura metálica que balançava sobre as rodas de borracha. Ela também era enferrujada e velha. Reconhecia cada dor do seu corpo, amava cada ranger de suas articulações. Reconhecia-os, conhecia-os de longa data. Lhe pertenciam na mesma medida em que eram - de fato - ela. Percebeu a doçura de um autoconhecimento que era quase afeto por suas falhas partes. Quase não. De fato.
     Era como viver por demasiado tempo em um lugar e acabar fazendo parte dele. Por exemplo: numa determinada manhã de novembro, quando subia a rua de cima da sua casa, os cachorros não latiram com a sua passagem. Não percebeu de imediato; passava escutando o trânsito longe, uma TV em algum andar baixo dos prédios - talvez uma portaria -, as folhas e flores dos ipês brilhando de vida. Mas sentia o vácuo de alguma coisa em sua paisagem (já se apropriara por uso capião). Dava-se conta de que não havia latidos.
     Do outro lado da cerca de ferro os cães descansavam apoiando a cabeça nas patas cruzadas. Seus narizes absolutamente entediados - ou plenos - ela não sabia. Uma parte dela ficou quase desapontada, estranhando a falta de alarde pueril que normalmente se fazia com a sua passagem (ou a de qualquer pedestre próximo o suficiente). Seu cheiro talvez já se misturasse ao das amêndoas apodrecendo no chão, às descargas de carros velhos da vizinhança, merda e ao perfume de feijão fazendo caldo nas panelas de pressão. O cheiro do tédio - ou da plenitude - ela não sabia.
     Seria essa a explicação para a insensibilidade do motorista ao passar implacável pelas mesmas passagens que ela admirava e notava com atenção? Seria esse o motivo da falta de tesão em um relacionamento de longas datas? Desejou ver tudo sempre com olhos virgens, e que assim fosse possível emocionar-se com cada uma das quartas-feiras que multiplicavam-se desmedidamente pelos calendários.
     O ônibus sacolejou forte e atirou esses pensamentos pela janela. Eles agora passavam por um viaduto com nome de político.  O entorno estava mudado: em lugar das construções de tijolo nú e ruelas de asfalto com terra batida ela agora via canteiros gramados, sinaleiras novas e prédios comerciais. Passaram por um museu. Ela riu consigo. Quando criança se perguntava por quê os velhos gostavam tanto de museus. Agora, décadas depois, achava graça no pensamento de que talvez fosse reconfortante para eles (ela - sim, agora ela também) admirar coisas mais antigas que si, como se as velhas obras de arte lhes dessem a tranquilidade da casa de uma avó.
     O apito de parada do ônibus soou de novo, ecoando pela sua cabeça em fantástico reverb. Talvez por conta da passagem do museu, começou a pensar na arte como conceito. Pensou que a música era espaço derramado no tempo e que a dança era movimento no espaço. A pintura era uma ideia, apenas, representada no espaço e que as fotografias eram espaço congelado em fatias de tempo. O cinema... O cinema era a ilusão do movimento dessas fatias de momento (ilusoriamente registrados, ilusoriamente, apenas).
     E a literatura...? Sua mente então, calou-se.  Em sua lógica de tempo e espaço, a literatura era nada. Só ilusão. E ainda assim se fazia mais real que tantas outras, às vezes. Muito mais real do que a sensação minúscula de sentir o relevo da tinta sobre o papel. Mas a literatura era só ilusão.
     Irritou-se consigo.
     "Ora, que merda você está pensando, velha? Parece um desses teóricos de gravata borboleta que passam seus dias desperdiçando os dos jovens."
     Mas não... Ao mesmo tempo ela sabia que talvez aquele pensamento fosse o mais valioso que já tivera na última década. Ao mesmo tempo ela sentiu-se roçar de leve com os dedos o tecido brando da Verdade, ou seja lá como se chamasse aquilo. Pensou que para saber o que é arte era necessário, antes de tudo, respirar fundo qualquer ar que fosse e sentir o gosto das partículas nos pulmões. Pensou que para saber o que é arte era necessário antes de tudo permitir-se chorar com propagandas ruins de concessionárias ou sabonetes de baunilha.
     Sua parada era a próxima. Puxou a cordinha e sentiu o irritante som debatendo-se por seu labirinto como um ouriço bêbado. Era prazeroso, apesar de tudo. Desceu do ônibus acreditando com todas as forças que a arte era espaço e movimento, tempo e ilusão.
   

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A Zadicêra - 01/12/2017

     Não sei, dessa vez, quem viu quem primeiro o outro naquela confusão de automóveis hostis. Mas é certo que ali mesmo comecei a sorrir. Nessa boca aqui, meio seca e contorcida pela tosse, que vinha mais soltando despretensiosidades e - muito - calando. Pois a boca deu pra sorrir.
     Seria o sorriso o orgasmo da boca? Ou seria este o grito e o primeiro o frenesi que o antecede? Se for assim, quem me convence a largar sua boca, quem me segura, quem me protege de mim?
     Se é questão de mistério, não sei bem, mas sou pessoa complicada. Complexa, talvez. Nada símples pra tentar decifrar. Mas sou clara e o que tenho está a mostra, gritado aos quatro ventos tudo o que posso dar. Só quem é clarividente pode ver.
     Não sei, na primeira vez, quem viu primeiro quem. Mas achei que você nunca ia me olhar do jeito que eu te olhava olho. Antes não me atrevia... Que ozada eu sou, até... Doida varrida, talvez. Mas você não sabe da missa um terço. E se tudo é uma questão de preço, esse é o de me ver de perto e saber da piscina, da carolina, da gasolina y otras cositas más. 
     Independente se é justo o se mereço, ajoelhou, tem que rezar . E não boto nem fé, não sei. Mas queria mesmo acreditar. Talvez... Preencher mais uma vez, com sangue novo, os tubos ermos do perecível músculo que bombeia meu peito.