quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Odette II

     Odette tropeçou na própria euforia e deu com tudo no chão de pedra fria e escura. Dessa vez não chorou. Já não chorava, quase, se caía. Zuzu dizia: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima", Ela fazia a dança de sacudir a poeira e às vezes terminava tão tonta que caía de novo de novo e se acabava de dar risada.
     Zuzu também dava risada. Bem, alto e forte, como seus braços e dentes, cristalina como sua aura. Odette olhou em volta: o playground estava cheio de crianças correndo e chutando bolas e caindo, também, mas nada de Zuzu. Achou estranho. Talvez ela estivesse brincando de esconde-esconde e ia sair de trás de uma pilastra e lhe meter um susto dos grandes. Resolveu procurar,
     A menina foi caminhando pelo pátio coberto, admirando os espaços vazios. Gostava: parecia que quando tinha sofás e cadeiras e mesas e armários a casa era mais das coisas que das pessoas. Odette gostava de poder correr sem se preocupar em tropeçar em tapetes, gostava de poder girar até cair sem perigo de bater a testa na quina da mesa. 
     O play dava nela uma vontade louca de tirar os sapatos e separar bem os dedos, agoniados por estarem presinhos tão juntos. Zuzu não deixava:
     "Esse chão é sujismundo, anjinho, vai deixar seu pé preto-preto,encardido e sabe quem é que não vai gostar?"
     Odette fazia bico e franzia bem a testa pra mostrar que não estava satisfeita. A mãe não gostava de pés-pretos-encardidos de sujeira de playground. Ficava parecendo "menino de rua, pé de moleque sem mãe e sem casa". A mãe gostava de sandalhinha branca de fivela e de meia soquete. A menina não... Mas gostava da palavra soquete. So-que-te. Soava como uma coisa bem mais divertida que meias brancas.
     Enquanto balbuciava essas sílabas, Odette observava, distraída, as crianças amareladas sentadas em torno de um brinquedo que tinha luzes e girava e fazia uns barulhos agudos meio desagradáveis. Seus olhinhos vidrados davam um pouco de medo nela, que resolveu ir procurar Zuzu em outro lugar.
     Saiu para o pátio aberto, que tinha um parquinho no meio e vários corredores laterais que davam pra lugares que ela nunca tinha ido. Olhou para trás: o elevador que subia pra casa da avó ficava no pátio fechado. Sentiu que fazia alguma coisa errada saindo de lá, mas como viu várias crianças no parquinho resolveu experimentar a escorregadeira.
      Haviam várias crianças na fila. Cada uma subia um degrau por vez e quando chegava a hora de escorregar podiam gritar de um jeito diferente. Odette entrou na fila, escutando ansiosa os gritos de cad griança que descia. Demorava bastante pra chegar a sua vez e ela queria ter o melhor grito de todos pra não desperdiçar seu momento.
     Quando chgou no topo da escada já tinha pensado na ideia perfeita. Só faltava uma menina mais e ela já ia pdoer encaixar a bundinha na escorregadeira e tomar ar pra gritar e chegar ao chão dando risada, como os outros. Uma sensação de poder e liberdade que ela escutava no timbre das vozes agudas e de seus gritos e via refletida nos cabelos desgrenhados pela descida.
     De repente olhou em volta e percebeu que lá de cima as coisas eram bem diferentes e que podia ver bem mais longe. No final de um dos corredores laterais viu duas crianças sozinhas, meio escondidas. Eram dois meninos e tinham os shorts abaixados e se olhavam e se cutucavam. Sem saber porquê, ela sentiu a garganta apertar e o estômago gelar e de alguma forma soube que eles estavam fazendo algo errado. Tomou um susto quando um empurrão a desequilibrou, quase lhe derrubando de lá do alto.
     "VAI LOGO!" gritou-lhe alguém. 
     Assustada, desconsertada, confusa e envergonhada, Odette se sentou na escorregadeira. Sentia como se de repente tudo tivesse muito mal e ruim e... Errado. E quis ir embora, e quis brigar com as crianças para que tivessem calma. Só no meio da descida lembrou que precisava gritar, mas não lembrava da sua ideia e tinha a garganta seca. 
     Um nó se formou em algum lugar dentro da sua barriguinha, deixando o ar entrar de qualquer jeito numa respiração descontrolada. Gritou rápido o que a menina de antes tinha gritado e quando pousou os pés no chão subiram lágrimas aos seus olhos, que ardiam. O nó no estômago subiu para a garganta, muitas imagens fervilhando na sua mente. Queria correr pra longe do parquinho, mas suas pernas pareciam feitas de massinha de modelar e se mexiam passo a passo, desengonçadas e lentas.
     Ainda assim, o mundo parecia girar como um roda-roda quando as crianças mais velhas se apoderavam dele. Suas risadas maldosas pareciam ecoar na cabeça da menina à medida que as pedras do piso se mesclavam umas com as outras, quebrando o lógico padrão dos ladrilhos. Odette não conseguia chorar. Odette não conseguia correr. Odette não conseguia voar pra longe. Pela primeira vez em muito tempo teve medo de cair. Não conseguiria cantar a música de Zuzu. Não conseguiria dançar a dancinha da poeira. Ficaria só estabocada no chão frio do playground.
     Pela primeira vez, Odette se sentiu presa dentro do próprio corpo.

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