quarta-feira, 8 de março de 2017

Odile IV

     Sabia que não deveria estar lá. E tinha sabido antes de mesmo pisar no rodapé da casa. Apesar de já ter recebido todos os avisos possíveis e belas confirmações do poder da sua intuição... Ainda assim ignorava.
     Olhando em volta e recuperando os buracos onde tinha a chance de se meter - e o fizera - e imaginava a metragem a ser escalada para sair de todos eles. Mas se metera por mérito próprio e grandes vacilos vêm com grandes responsabilidades.
     Suportava, apenas. Será que um belo dia chegava o momento da vida onde você se via falando sobre preços de lajotas e pisos de PVC? Comentando orçamentos de azuleijos, rejuntes e art decô? Na noite anterior se pegara imóvel, encarando a quina do teto do hotel como se no vértice daqueles 3 planos estivesse algum tipo de resposta.
     Pra qual pergunta? Havia muitas não respondidas. Madeira ou fake? Quem sou eu? Tijolo ou pastilha? Eram os deuses astronautas? Quem dirige? Quem sou eu? Onde vamos almoçar? Muitas não eram respondidas, mas elas sempre brotariam a todo momento. Naquele mesmo instante se perguntava se o gosto da esposa do colega de trabalho de Leonardo para decoração seria tão intragável quanto seu gosto por estampas de blusa.
     Repreendeu-se por esse pensamento maldoso. "Você está se tornando o tipo de pessoa que antes te dava tédio". Sabia do risco quando resolvera ir morar com ele naquele apartamento de gosto meio asséptico-cult-pop tirado a minimalista. Sabia que talvez seu sorriso ficasse tão esticado quando o couro do sofá da sala. Mas achara que seria um processo doloroso, árduo - suportado, apenas.
     Muito ao contrário, havia sido como descer uma ladeira de declive suave, os pés arrastando-se como se usasse um preguiçoso chinelo para ir comprar pão num sábado de manhã. Mas não doera. Nem sequer fora difícil em qualquer momento; era o curso natural da inércia espaço-temporal. O mesmo fluxo que agora lhe movia as mãos, enxugava o molho no guardanapo, levava a taça aos lábios. Piscar, inspirar. Manter respiração. Tentar escutar o que ele está dizendo. Virar para olhar na direção dela quando traça um comentário. O sorriso solto, o olhar nublado.
     Desde a noite anterior parecia que o grande catálogo de ferragens de banheiro que levava na bolsa havia enferrujado pelo tipo de má fé que tratora até aço inox. Não lhe brilhavam mais os olhos. Seu reflexo metálico já não lhe mostrava toalhas felpudas e sabonetes de verbena. Teria sido uma vida confortável. Teria sido um declive suave e indolor se aquela quina de teto não parecesse um impasse dentro de sua própria cabeça.
     Olhara para o lado e se perguntara como poderia ele dormir tão tranquilo, sem dar-se conta de que percorriam itinerários que sempre passavam por aquele vértice, como se marcasse um limite máximo de onde aquela ladeira chegava. O resto era adiar o fim, adiar o ponto final. Alternar entre os planos, deslizar pelas arestas das 3 dimensões tangíveis enquanto brincava de desperdiçar a quarta. E ele ressonara tão tranquilo, sonhando com pequenos olhinhos e dobrinhas que esperava ter germinado na barriga que alisava, distraído e com alguma doçura.
     Estremecera com esse pesamento. Olhara fundo no vértice e sentira que de alguma forma aquele ponto solitário lhe abrira um furo algum lugar dentro. Nunca esqueceria esse pensamento. Agora, algumas semanas depois, porém, se concentrava mais em lembrar da numeração da textura de cortina que usaria na sala. Era creme. Creme alguma coisa L35? Não, calma, isso era o Sofá.
     A mulher riu. Sônia. O nome dela era Sônia.
     - Esquece, você me manda depois. - disse ela, abanado o ar como se houvesse fumaça - Eu sigo uma pasta no pinterest, só com paletas de cores e texturas de tecidos e tinturas. Tenho até uma pasta especial de papeis de parede. Edições comemorativas de natal, estampas infantis pro quarto das crianças... - ela parou um segundo, aqui, lançando um olhar para seu marido e depois para Leonardo e depois para Odile - E para quando planejam o pequeno? - disse, comovida, quase guinchando em pequena euforia.
     Leonardo sorriu, num desconforto quase fingido, quase cheio de contentamento. Olhou para ela e começou a responder, balbuciando.
     - Sim... Sim... Estamos conversando sobre, desde que decidimos morar juntos. No projeto do apartamento com certeza está previsto um pequeno quarto que seria para o bebê, mas que pode servir a ela de escritório também. Estamos ainda esperando... - Gaguejou um pouco sem saber como tocar no tema da fecundação.
     Odile empalideceu. Não sabia se queria ter contado nada disso àquele casal. O marido de Sônia, pareceu perceber o pudor de Leonardo - sem ter nem pálida percepção do desconforto de Odile - e completou, sugerindo:
     - Esperando a cegonha, né? - soltou uma risada grave e meio safardana que deu a Odile vontade de cuspir a carne que colocara na boca. - Ah, nada como o período fértil do mês, hein? Tem que aproveitar para usar todas aquelas roupinhas de renda agora porque depois, meu querido... Ha! Não tem mais oba-oba, nem cinta-liga, nem noites de sono. E deu uma piscadinha. - Tô mentindo, Nona? Hahahahahaha. - Riu, dando uma cutucada na esposa, como quem invoca cumplicidade.
     Sônia e Leonardo riram. Sem graça, Odile apenas sentiu enregelar o estômago, sem dizer palavra. Torcida, deu um gole do vinho. Depois de coçar a garganta, a mulher retomou seu monólogo:
     - Bom... Tem uns papéis de parede divinos pra bebê. Coisa de primeira, parece quarto de príncipe. Digo, ou princesa... Mas te digo que tomara que seja um menino - disse, como que confidenciando um segredo politicamente incorreto - porque o azul é muito mais lindo que o rosa. Não que eu não goste do rosa. Mas o tom do azul tem algo... algo de realeza que simplesmente vale o preço do metro quadrado.
     Odile não sabia se deveria dizer alguma coisa. Girava o garfo já enrolado de espaguete na colher, como se aquele barulho lhe arranhasse a garganta, que coçava com as coisas que ouvia. O orçamento obsceno dos papéis de parede lhe desciam com mais facilidade que o macarrão frio. Encostou os talheres na esquerda do prato, focou na quina do piso na parede da sua frente, por baixo do braço da Sônia, que começara a gesticular. Desfocou o pesamento como quem desfoca uma lente. Dormentou os próprios sentidos. Apenas acenava e meiamente sorria de lábios fechados.
   
 
   

domingo, 5 de março de 2017

Peso Líquido

Não me entregue seus problemas
Eu já tenho os meus
E tenho tentado reduzir
Seu peso líquido
No rio da minha vida

Não me invente compromissos
Eu já tenho demais
E tenho tentado reduzir
Sua frequência
Nos meus planos semanais

E eu sei
Que tá cheio de extremista
E de igreja batista
Que tá caro o analista
E que eu não colo mais na pista

Eu sei, eu sei
Que os rolê tão bem machista
E todo dia é uma conquista
E não aparece na revista
Que o governo é golpista

Isso tudo tá provado
Mas também tem outro lado
Um pouco mais iluminado
E hoje eu quero andar por lá

Por esses e outros...

Não me aponte esse pecados
Eu já me culpo demais
E tenho tentado aliviar
As penitências
Por meus erros mais banais

Não me venha com verdades
Eu não acredito nesse deus
E tenho evitado caminhar
Com os muito santos
E também com os muito ateus

sexta-feira, 3 de março de 2017

Cego Sol

Escrever sempre foi meu atestado de covardia
Muita dor, mas pouco esforço...
Aprendendo a viver por alguma poesia
O típíco leão
Que não encontra coragem
Só desejo rançoso
No próprio coração

Escrever sempre foi meu escape de todo dia
Muito de mim, mas só no esboço
Aprendendo a mostrar sem dar cara a tapa
O típico leão
Que se esconde na juba
Para gritar um rugido
Sem mostrar os dentes

Escrever sempre foi minha forma de melancolia
Muito encontrada no fundo do poço
Aprendendo a escalar sem desejo de subir
O típico leão
Que se prende na jaula
Que se sente protegido
Na própria ilusão

Escrever sempre foi em mim, também, melodia
Muito contida, acumulada em caroço
Aprendendo a vazar sem ter que explodir
O típico leão
Que disfarça o seu medo
Jean Michel Bihorel - Flower Figures 002
Com raiva, vaidade...
Guarda o eu em segredo


Mas acordei um dia antes do dia
Úmido, fresco, antes do sol aparecer
E descobri que talvez em mim existam também...
Mesmo que fracas, mesmo que murchas
Mesmo que brotos, mesmo que feias
Pensei que em talvez em mim possam crescer
Porque antes de ver o sol, vi flores em você