Vagava sem rumo pela casa, confusa, perdendo-se nos caminhos secretos dos ladrilhos do piso. Trôpega, chutava pesos de porta, tropeçava em quinas de móveis, chutava rodapés.
Ás vezes pensava lembrar-se pra onde ia, mas no meio do caminho as ideias se embaçavam e esvaíam-se da sua mente. Procurava respostas no fundo da geladeira. Encontrava apenas angústia e potes vazios de pepino em conserva.
Tudo o que era líquido se tornava gasoso e evaporava. Tudo o que era sólido insistia em desconfigurar-se para ser encontrado numa outra gaveta que nenhum dos seus eus se lembrava de haver sequer aberto algum dia.
Talvez sua casa fosse como ela própria, terreno mal desbravado e ilusoriamente cartografado em mapas simplórios que se mostravam inúteis nos primeiros segundos de uso e necessidade. Desconhecia-se: todos os sofás, cadeiras, lantejoulas, quadros, mesas, poltronas, vasos, eletrodomésticos e camas lhe pareciam alheios, invasores e inúteis ao essencial.
Sentiu-se pequena e dura como uma bola de gude. Sua cabeça seguramente rodava como se fosse uma. Sentia os raios de luz que passavam pelas frestas das janelas lhe trespassarem a pele e os músculos e os ossos e fazerem prisma, cegando-lhe em júbilo.
Estava de luto. Desconhecia, negava a física e banhava-se na realidade como uma criança se banha no som macio de uma cantiga manjada e reconfortante cantada numa outra língua. Sentida, murmurada, porém de forma alguma compreendida ou mesmo acreditada.
Por vezes desacreditava tanto de tal escenário externo que sentia o centro de gravidade deslocar-se 90º. Esparramava-se, pesada, como se deitasse no chão. Se as costras escorregavam contra o reboco, sentando-lhe, tinha a sensação de um punho fechado lhe devolvendo ao eixo violentamente.
Passava, então, horas encarando as caixas de papelão onde vinham seus remédios, sem exatamente ler seus rótulos ou concentrar-se bem em qualquer uma das informações de embalagem. E se às vezes balbuciava um cálculo e as tomava na sua medida exata, às vezes também lhe acometia uma ira e atirava todas na latrina gritando-lhes: "MERDA".
Já em um momento, as pílulas haviam descido os canos em forma de vômito desesperado do exagero, das linhas tênues cruzadas com cada vez menos esforço. Depois levantava, joelhos marcados pelo tecido do tapete do banheiro.
Voltava a vagar sem rumo no escuro. Talvez sem nem haver limpado da boca o gosto ácido da bílis e dos comprimidos dissolvidos pela saliva. Linhas cada vez mais turvas, pés cada vez mais inchados de tromboses e trombadas e tropeços.