segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Pescaria II

"Nenhum aquário é maior do que o mar
Nem quando ultrapassa o tamanho da Terra"
Porque mar é abismo de escuro infinito
Morada de tudo o que a mente gera
Medo, morte, bicho, grito
A aventura e o terror de querer o impossível
E diante do horizonte que de mim corre, comigo
Qualquer peixe é só uma desculpa

Pescaria I

Eu que na rede pesco tanto peixe
Não encontro anzol que se prenda à tua boca
Não encontro isca que te brilhe o olho

Eu que na rede pesco tonelada
Ainda tento encontrar uma vara
Que aguente o peso de você em mim

Quem pesca e quem é pescado?
Pergunta inútil e até saturada
Quando no peito é apunhalado
Quem com arpão perseguiu peixe-espada

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Sinfonia de Rua

É uma cortina que se fecha
Como quem sussurra em mil pequenas vozes:
"Se me olhas muito, tudo é cinza,
É frio, é molhado
Mas se me escutas com bastante cuidado
Posso ser sinfonia tocando no asfalto".

domingo, 18 de setembro de 2016

Odile II

     Vagava sem rumo pela casa, confusa, perdendo-se nos caminhos secretos dos ladrilhos do piso. Trôpega, chutava pesos de porta, tropeçava em quinas de móveis, chutava rodapés.
     Ás vezes pensava lembrar-se pra onde ia, mas no meio do caminho as ideias se embaçavam e esvaíam-se da sua mente. Procurava respostas no fundo da geladeira. Encontrava apenas angústia e potes vazios de pepino em conserva.
     Tudo o que era líquido se tornava gasoso e evaporava. Tudo o que era sólido insistia em desconfigurar-se para ser encontrado numa outra gaveta que nenhum dos seus eus se lembrava de haver sequer aberto algum dia.
     Talvez sua casa fosse como ela própria, terreno mal desbravado e ilusoriamente cartografado em mapas simplórios que se mostravam inúteis nos primeiros segundos de uso e necessidade. Desconhecia-se: todos os sofás, cadeiras, lantejoulas, quadros, mesas, poltronas, vasos, eletrodomésticos e camas lhe pareciam alheios, invasores e inúteis ao essencial.
     Sentiu-se pequena e dura como uma bola de gude. Sua cabeça seguramente rodava como se fosse uma. Sentia os raios de luz que passavam pelas frestas das janelas lhe trespassarem a pele e os músculos e os ossos e fazerem prisma, cegando-lhe em júbilo.
     Estava de luto. Desconhecia, negava a física e banhava-se na realidade como uma criança se banha no som macio de uma cantiga manjada e reconfortante cantada numa outra língua. Sentida, murmurada, porém de forma alguma compreendida ou mesmo acreditada.
     Por vezes desacreditava tanto de tal escenário externo que sentia o centro de gravidade deslocar-se 90º. Esparramava-se, pesada, como se deitasse no chão. Se as costras escorregavam contra o reboco, sentando-lhe, tinha a sensação de um punho fechado lhe devolvendo ao eixo violentamente.
     Passava, então, horas encarando as caixas de papelão onde vinham seus remédios, sem exatamente ler seus rótulos ou concentrar-se bem em qualquer uma das informações de embalagem. E se às vezes balbuciava um cálculo e as tomava na sua medida exata, às vezes também lhe acometia uma ira e atirava todas na latrina gritando-lhes: "MERDA".
     Já em um momento, as pílulas haviam descido os canos em forma de vômito desesperado do exagero, das linhas tênues cruzadas com cada vez menos esforço. Depois levantava, joelhos marcados pelo tecido do tapete do banheiro.
     Voltava a vagar sem rumo no escuro. Talvez sem nem haver limpado da boca o gosto ácido da bílis e dos comprimidos dissolvidos pela saliva. Linhas cada vez mais turvas, pés cada vez mais inchados de tromboses e trombadas e tropeços.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

17.08.16

Inspirados em Murilo Mendes.


"O HOMEM E A ÁGUA"

Talvez um dia já fui peixe
Cardume, comida, corais na varanda
Nadando na vida, dançando ciranda
Flutuando ao balance do empuxo e do peso

Mas eis que o sol me atrai por um feixe
Entre espumas o ar me invade a narina
A mesma luz já me queima a retina
Com o mar sob os pés, só avisto horizontes


ANONIMATO

 Se me disfarçasse de multidão me olharias mais sincero?