Era a festa da carne e havia um banquete ao seu redor. Saboreava o calor, o suor, o sal grudado na pele e a textura das roupas rasgadas dos outros bacantes. Eram milhares de corpos em transe rítmico, como um culto sagrado de 1984. Você entende perfeitamente o motivo, a vontade, o nome. Era a festa da carne.
Em algum lugar haviam olhos. Atrás de você, na frente, em todos os lugares haviam vários tipos. Há um par que te perambula na consciência, oras aqui, oras lá, mas sempre (ou quase) ao alcance da vista. Ou sua ou dele. Tão novos, tão jovens, como que recém comprados. Eles te encaram, sem desviar randomicamente como os outros. Ele parece sorrir sem dentes e você foge... Não bem por um motivo, mas talvez sim.
Nem você, talvez, diria. Uma certa inveja. Parecia que aquele mundo que tanto te confundia e devorava era terra de posse dele - a figura que dela se erguia - como que alheio, mas soberano de sí e das tremulâncias que eram tudo o que mais se via.
Como se uma câmera de shutter lento, meio que bêbado, cortasse a gelatina do tempo e retirasse aquele momento como uma fatia de queijo. Todo o entorno estaria turvo, derretido, mas não ele e seus ombros e cabeça, despontando do rio de carne como o periscópio de um submarino. É dono do rio e dono dos olhos.
Neles, os círculos de confusão de foco têm raio tão ínfimo (e trovão delicado, quase inaudível) que a luz que ali se esbarra e reflete pra você forma uma imagem nítida, mas tão nítida que não se vê só teu rosto (desfigurado pelos êxtases contínuos), mas todo um oceano de coisas. São como espelhos que só mostram o que está dentro, e a imagem que produzem, por sua vez, é tão nítida, que nela é possível mergulhar.
Lá dentro, na lógica de uma boneca russa, tem um lago negro, numa clareira, e as águas são tão calmas que parecem ser melaço quente, soltando vapores entorpecentes, tornando indistinguíveis as árvores ao redor da clareira. E esse é também reino dele. E é como se, na verdade, real fosse aquilo, e a alucinação profana e as carnes e o festival de bestialidades no qual estão você e os outros bacantes fosse como um filme que o diverte, mas não lhe toma o controle.
Você não para de olhar porque não consegue, não confia, não acredita em quem não se desespera. Só confia em quem sente frio; lição bem aprendida, ensinada por outros verões. Mesmo assim, apesar disso, uma certa inveja. Nem você diria. Talvez sim, talvez muito mais.